As Similitudes entre Músicas Tradicionais do Mundo e Música Contemporânea Erudita, Pop, Rock e Jazz: Explorando Influências Interculturais

Um breve ensaio descrevendo como as inovações musicais no séc. XX foram beber influência a tradições primitivas de todos os continentes. Texto de Vítor Rua (Músico & Etnomusicólogo).

A música, não sendo uma linguagem (não tem uma sintaxe), e não sendo de todo universal (existem tribos que nem a palavra “música” têm na sua linguagem e muito menos o “conceito”), transcende, no entanto, fronteiras geográficas e culturais, conectando pessoas de diferentes origens e contextos. Ao longo da história, as músicas tradicionais do mundo evoluíram e se entrelaçaram com géneros contemporâneos, como a música erudita, pop, rock e jazz. Essa interconexão resultou em obras que aparentam ser inovadoras, mas que, na verdade, têm raízes profundamente misturadas com as tradições musicais globais. Neste ensaio, exploraremos as similitudes entre certas músicas tradicionais do mundo e géneros musicais contemporâneos, destacando as influências mútuas e a forma como os compositores conseguem incorporar elementos de diversas culturas.

As músicas tradicionais do mundo possuem uma riqueza inigualável, refletindo a história, as crenças e as identidades das comunidades que as criaram. Através de instrumentos únicos, ritmos distintos e escalas melódicas específicas, essas músicas transmitem uma autenticidade que ecoa ao longo dos séculos. No entanto, é importante notar que a linha que separa o tradicional do contemporâneo é muitas vezes tênue, e os compositores contemporâneos têm demonstrado um interesse crescente em incorporar elementos dessas tradições em suas composições.

A música erudita contemporânea, por exemplo, frequentemente se inspira em melodias e ritmos tradicionais de diferentes culturas. Compositores como Béla Bartók e Igor Stravinsky procuraram explorar as raízes folclóricas em suas obras, incorporando elementos de música húngara e russa, respectivamente. Essa abordagem resultou em composições que eram inovadoras para sua época, mas que ao mesmo tempo, eram enraizadas nas tradições musicais de seus países de origem.

No universo da música popular, encontramos exemplos de fusão entre o tradicional e o contemporâneo. Artistas como Paul Simon e Peter Gabriel ou David Byrne mergulharam nas músicas africanas e sul-americanas, incorporando ritmos e texturas em suas canções. O álbum “Graceland” de Paul Simon é um notável exemplo disso, onde ele colaborou com músicos sul-africanos, criando uma síntese única entre a música pop ocidental e as tradições musicais africanas.

O rock e o jazz também não escaparam dessa influência intercultural. O jazz, em sua essência, é uma mistura de diversas tradições musicais, e músicos como Duke Ellington incorporaram elementos da música afro-americana e das culturas globais em suas composições. Um disco como o Free Jazz de Ornette Coleman, faz contraponto com a música de Arte da Birmânia, por exemplo.

O rock, por sua vez, absorveu influências de todo o mundo, desde o reggae jamaicano até os sons africanos da voz e das guitarras de Led Zeppelin.

Contudo, é essencial reconhecer que a interação entre géneros musicais não é unilateral. Assim como os compositores contemporâneos incorporam elementos tradicionais, as músicas tradicionais também evoluem para incorporar influências contemporâneas. Isso pode ser visto nas músicas folclóricas que se adaptam a novos arranjos e instrumentos modernos, mantendo-se relevantes para as gerações atuais.

Em suma, as similitudes entre músicas tradicionais do mundo e géneros musicais contemporâneos são uma prova de que a música é uma forma de expressão em constante evolução. A influência mútua entre essas tipologias musicais ressalta a capacidade da música de unir culturas e transcender barreiras. Compositores e artistas que reconhecem a importância das tradições musicais podem criar obras que são inovadoras, mas que ao mesmo tempo honram o passado. À medida que continuamos a explorar e a celebrar a diversidade musical, é imperativo lembrar que, por mais modernas que as composições possam parecer, elas frequentemente têm suas raízes firmemente plantadas nas tradições globais que moldaram a música como a conhecemos hoje.

Músicas Etnográficas: Uma Exploração Etnomusicológica das Expressões Polifónicas Africanas, Ragas Indianos, Gagaku Japonês, Músicas Tradicionais Chinesas, Música dos Esquimós e Música Sussurrada do Burundi

A etnomusicologia é uma disciplina que se dedica ao estudo das músicas tradicionais e folclóricas de diferentes culturas ao redor do mundo. Sob uma abordagem científica e musicológica, busca compreender a riqueza das expressões musicais, suas estruturas, contextos culturais e funções dentro das sociedades. Neste ensaio, exploraremos algumas das músicas etnográficas mais distintivas, como as músicas polifónicas africanas, o raga indiano, o gagaku japonês, as músicas tradicionais chinesas, a música dos esquimós e a música sussurrada do Burundi, destacando seus elementos únicos e sua relevância na paisagem etnomusical global.

Músicas Polifónicas Africanas:

https://www.youtube.com/watch?v=jtHJwndHtO8

As músicas polifónicas africanas são exemplares da complexidade das tradições musicais do continente. Grupos étnicos como os Baka da África Central, os Zulu da África do Sul e os pigmeus de Aka são conhecidos por suas harmonias intricadas e sobreposições de vozes. A polifonia africana frequentemente desafia as convenções harmónicas ocidentais, priorizando a textura e a colaboração entre as vozes. Aspectos como a polirritmia e a intercalação de padrões rítmicos conferem às músicas africanas uma sensação de unidade diversificada, revelando profundidades musicais que vão além das aparências superficiais.

Raga Indiano:

O sistema raga na música indiana é uma manifestação da profundidade espiritual e filosófica da cultura indiana. Os ragas são escalas melódicas que guiam a improvisação e a expressão emocional dentro da música clássica indiana. A atenção meticulosa à afinação e à ornamentação melódica cria um espaço musical único, onde o artista se conecta com a emoção e a espiritualidade. A estrutura raga é flexível, permitindo a exploração de diferentes estados emocionais, desde a contemplação tranquila até a exuberância vibrante.

Gagaku Japonês:

O gagaku é uma forma de música de corte tradicional no Japão que tem raízes antigas. Caracterizado por suas melodias simplificadas e instrumentação única, incluindo flautas, cordas e tambores, o gagaku oferece uma experiência auditiva que evoca uma sensação de reverência e tranquilidade. A tradição de gagaku destaca a importância da precisão e da continuidade, enquanto também incorpora elementos da poesia clássica japonesa, como o tanka. A música do compositor Morton Feldman, tem muitas influências deste estilo musical.

Músicas Tradicionais Chinesas:

A música tradicional chinesa abrange uma ampla gama de estilos e instrumentos, muitos dos quais têm raízes antigas. O erhu, um instrumento de cordas, e o guzheng, uma cítara de 21 cordas, são alguns exemplos notáveis. A música chinesa frequentemente valoriza a imitação dos sons naturais e a relação entre a música tradicional. A tradição musical chinesa é profundamente influenciada pela filosofia e estética do país, resultando em uma paleta sonora única e variada.

Música dos Esquimós:

As músicas dos esquimós, também conhecidos como inuítes, refletem a relação íntima desses povos com a terra e o ambiente ártico. A música esquimó frequentemente emprega técnicas vocais e instrumentos de percussão, imitando os sons da natureza e criando um senso de comunidade. A música é usada para contar histórias, expressar identidade cultural e transmitir conhecimento intergeracional.

Música Sussurrada do Burundi:

A música sussurrada do Burundi é uma prática única que envolve um canto sussurrado em harmonia. As vozes combinadas criam um efeito hipnótico e etéreo, transportando os ouvintes para um espaço sonoro distinto. Essa prática musical está ligada a rituais tradicionais e celebrações, e seu efeito sonoro peculiar despertou interesse não apenas na comunidade etnomusicológica, mas também entre os apreciadores de música experimental.

A etnomusicologia nos convida a explorar e apreciar a riqueza da diversidade musical global. As músicas polifónicas africanas, o raga indiano, o gagaku japonês, as músicas tradicionais chinesas, a música dos esquimós e a música sussurrada do Burundi são exemplos poderosos das complexas interações entre música, cultura e sociedade. Sob uma lente científica e musicológica, somos lembrados de que a música transcende as fronteiras linguísticas e culturais, conectando-nos à nossa humanidade compartilhada e enriquecendo nosso entendimento das expressões musicais que permeiam nosso mundo diversificado.

Influências das Músicas Etnográficas na Pop, Jazz, Rock e Música Erudita Contemporânea: Uma Abordagem Científica e Etnomusicológica

A interação entre músicas etnográficas e géneros musicais contemporâneos, como pop, jazz, rock e música erudita, tem sido um campo fértil para a inovação e a criação de novas sonoridades. Com um olhar científico e etnomusicológico, exploraremos as influências das músicas tradicionais em composições icónicas, como o álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” dos Beatles, a obra de Duke Ellington, o pop experimental de Scott Walker em “Bish Bosch” – influenciada pelos ritmos de percussão e cuíca brasileiros e a transformação da ópera contemporânea através do canto sussurrado do Burundi. Além disso, examinaremos como certas técnicas instrumentais contemporâneas têm raízes profundas nas músicas tradicionais, como o canto harmónico dos Tuva. A música electrónica do compositor americano Morton Subotonick (), é quase uma “cópia” do som subaquático produzido por um elefante marinho, captado pelo realizador Werner Herzog num dos Pólos do Planeta.

Influências nas Músicas Pop: “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e Scott Walker’s “Bish Bosch”

O álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” dos Beatles é um marco na história da música pop que reflete influências etnográficas. A canção “Within You Without You” de George Harrison apresenta elementos sonoros indianos, incluindo a Sitar e instrumentos de percussão tradicionais, muito influenciado pelo compositor indiano Ravi Shankar. Esses elementos criam uma atmosfera única e exploratória que expande as fronteiras do pop convencional.

No caso do compositor Scott Walker e seu álbum “Bish Bosch”, as influências etnográficas são evidentes em sua abordagem experimental. Incorporando elementos de música concreta, música erudita e pop, Walker cria uma paisagem sonora desafiadora e inovadora. Sua abordagem eclética demonstra como elementos etnográficos podem ser reinterpretados e mesclados com géneros contemporâneos para criar algo novo e intrigante.

Influências no Jazz: Duke Ellington e o Uso de Elementos Afro-americanos

Duke Ellington, um dos maiores nomes do jazz, demonstrou como elementos etnográficos podem enriquecer e expandir o vocabulário jazzístico. Sua exploração das influências afro-americanas nas músicas tradicionais resultou em composições únicas – como a peça “Caravan” que incorporam ritmos, melodias e improvisações inspiradas na herança cultural afro-americana. A colaboração com músicos como Billy Strayhorn também exemplifica como a fusão de elementos tradicionais e contemporâneos pode levar a uma linguagem musical rica e distintiva.

Transformação na Ópera Contemporânea: Canto Sussurrado do Burundi e Novas Técnicas Vocais

A ópera contemporânea tem sido impactada pela exploração de novas técnicas vocais inspiradas por músicas etnográficas. O canto sussurrado do Burundi, ou o canto da garganta Inuit, por exemplo, desafiou as convenções do canto lírico tradicional, levando a ópera a experimentar com novas formas de expressão vocal. A técnica do Bel Canto foi suplantada por técnicas contemporâneas como o sussurro, o grito e o uso do parlato, criando um espectro mais amplo de possibilidades emocionais e narrativas, como no caso da peça Sequenza III de Luciano Berio ou em várias obras da compositora Meredith Monk ( https://www.youtube.com/watch?v=89I-4wtz3uU ).

Técnicas Instrumentais Contemporâneas e Músicas Tradicionais: O Caso do Canto Harmónico dos Tuva, e as Advanced Technics da guitarra de Botswana

A influência das músicas etnográficas também é notável em técnicas instrumentais contemporâneas. O canto harmónico, uma técnica vocal dos Tuva, foi incorporado por compositores contemporâneos em suas composições eruditas e experimentais, como no caso da composição Stimmung de Karlheinz Stockhausen. Essa técnica, que envolve a produção de múltiplos tons simultâneos, acrescenta uma dimensão única às composições contemporâneas, demonstrando como a inovação muitas vezes ressoa com tradições musicais ancestrais.

Também na guitarra clássica podemos ver Advanced Technics na obra do guitarrista Andy Mckee , mas essas técnicas avançadas reflectem o uso invulgar da guitarra pelo guitarrista de Botswana Ronnie, que apenas com algumas cordas (as outras partiram-se), recria essas técnicas avançadas de uma forma inacreditável, para quem desconhece de todo os tais métodos contemporâneos de tocar nesse instrumento.

Em síntese, as influências das músicas etnográficas nos géneros contemporâneos como pop, jazz, rock e música erudita demonstram a riqueza da interação cultural na música. A exploração de elementos tradicionais enriquece a paleta sonora e expande os horizontes da criação musical. Ao adotar uma abordagem científica e etnomusicológica, somos convidados a apreciar como a música transcende fronteiras e evolui através da interconexão de culturas e géneros musicais distintos.