Crítica: A Ressaca (Todd Phillips, 2009)

O primeiro filme desta hoje bem conhecida e muito bem humorada trilogia nasce da indústria de Hollywood e é praticamente o único que merece comentário mais dedicado, já que os outros são decalques baratos da magnífica fórmula que lhe dá mote. A Ressaca, realizado por um cineasta ainda em início de carreira e estrelado por uma série de actores com interesses em projectos ecléticos e exóticos, em particular na comédia, parte da premissa simples de um grupo de amigos que festejam determinado acontecimento e que, tendo ingerido uma série de substâncias alcoólicas e de outros tipos, acordam no dia seguinte no seu quarto de hotel perante uma série de estados de coisas invulgares, sem em nada se lembrarem de como esses estados de coisas vieram a ter lugar.

Alguns destes incluem: um tigre na casa de banho, um bebé no frigorífico, um chinês nu no porta-bagagens, e um desses quatro amigos totalmente desaparecido. A quase totalidade do enredo do filme, assim, passa-se com os três amigos a tentarem desvendar, através de pistas e da reconstrução lógica dos acontecimentos, o que se terá passado na noite anterior.

Assim, as personagens encontram aspectos da realidade que têm alguma relação com eles, mas não reconhecem nada dessa relação. É semelhante esta situação a, por exemplo, situações de amnésia ou de esquecimento devido a ausência prolongada. Mas, mais relevantemente, é semelhante à situação de quando se nasce, se vem ao mundo pela primeira vez.

Existem, porém, algumas diferenças. Quando se nasce constrói-se exclusivamente a partir do a priori, de uma série de disposições que nos são fornecidas à partida, supostamente, sendo a partir desse momento que acumulamos um novo elemento na nossa formação: a experiência empírica. Mas aqui, na ressaca, constrói-se a partir de algo que foi destruído, e toda a gente — protagonistas desta película e espectadores em geral — sabe disso claramente. Não é como se se fingisse ou se soubesse que não havia nada antes: sabe-se. Difere, assim, de um estado neutro a que o estado de tabula rasa do nascimento talvez se assemelhe.

E talvez assim a ressaca se aproxime (analiticamente? Alegoricamente? Ou o quê?) do que acontece — talvez se aproxime objectivamente de se saber de um anterior, seja em forma de a priori ou em forma de anterior temporal e empírico, saber-se que o modelo da percepção em que hoje operamos, com o auxílio essencial da progressão do tempo, tem de envolver contraditoriamente uma negação do início. O filme sugere que a percepção não pode ter início: tem de ter existido sempre. 

Este é o estado em que existimos na nossa concepção de nós próprios ao nível da filosofia do ser em si, a ontologia. Parece assim dependente de uma concepção de eterno. Não se compreende que tenha tido um início. Semelhante à concepção de universo aristotélico, diga-se — que curiosamente tinha mais o homem no centro. Só mais tarde emergiu a abstração do monoteísmo e do homem-anterior-ao-homem, o divino. E justamente. Porém, é – conforme as grandes formas de arte – mais difícil de digerir, de processar, de ter naturalizada. No entanto hoje todos nós, com a cruz às costas, sabemos bem fazê-lo.

É assim mais fácil, na nossa pele actual, ou seja, é um facilitismo, regularmos a nossa disposição mental (aquilo que estamos dispostos a aceitar) conforme um quadro em que exista um antes, mesmo de um antes de poder existir antes. Ou seja, a nossa capacidade de digestão é dependente da nossa noção instintiva de um eterno. Tal é natural: só uma abstração monumental pode levar à concepção de nós mesmos não existirmos de todo (abstracção obviamente ligada à ideia de existir tempo), e só outra abstracção de quase igual monta pode levar à ideia de não existirmos antes (logo favorecendo a substituição por um divino). É aqui que nos encontramos quando chegamos à ressaca: o ponto em que surge uma terceira abstração, muito coincidente com as coisas tal como elas são: a ideia de se ter acabado de nascer – essa é a sensação – mas ao mesmo tempo ter clara percepção de que havia um antes e de que há pistas na realidade presente que levam a um antes.

O que sucede na ressaca é assim uma história de detectives, semelhante à exegese de geneologias: perceber o que existiu antes – seja “o início” ex nihilo ou, neste caso, ex narcótico. É um mundo anti tabula rasa. A favor de universo sem princípio, coisas sempre existentes. Esta é a teoria ontológica que o filme sugere.