Crítica: Indiana Jones e o Marcador do Destino (James Mangold, 2023)

Durante a década de oitenta, no dealbar de um revivalismo da Hollywood escapista levado a cabo por realizadores e produtores orientados para o imaginário da família, da adolescência e da infância, como Steven Spielberg, George Lucas, Robert Zemeckis ou John Hughes, em contraste com a anterior década de setenta, onde o cinema americano era notoriamente acinzentado, intelectual e auto-crítico, as produções da série cinematográfica Indiana Jones ganharam um lugar quase mítico no panteão do entretenimento desse meio, funcionando como uma revisão muito eficaz, muito apaixonada e muito tecnicamente meticulosa das produções de série B, quer do cinema quer da literatura, retratando aventuras exóticas — envolvendo, de modo geral, a figura típica do protagonista como a de um ocidental nos trópicos, com chapéu para o proteger tanto do sol, como da chuva e dos insectos, casaco de material resistente, em geral cabedal, e acessórios de sobrevivência — pequena sacola a tiracolo, pistola, cordas ou até mesmo chicotes, etc. — botas de caminhada, e barba mal feita — nos trópicos não há tempo para barbear.

Esta figura enquadra-se, tipicamente também, na senda dos exploradores de tesouros e ruínas, imaginário de aventuras cuja mitologia advém da idade de ouro da antropologia e da arqueologia, ao longo de todo e particularmente no final do século XIX. Variações deste mote podem ser encontradas, mas basicamente funciona assim. Não é de mais lembrar que as empreitadas da vida real de trabalho arqueológico e antropológico sobre antigas culturas — os Egípcios, os Maias, os Incas, e tantas outras civilizações perdidas na história — que foram fruto dessa idade de ouro da antropologia e da arqueologia ocidentais devem e vão continuar a ser celebradas, dado que foi desse espírito científico e de curiosidade intelectual e sistematização académica, advinda principalmente da Grande-Bretanha, da França e dos Estados Unidos, que se empreenderam trabalhos de investigação que as próprias culturas residentes actualmente nessas localizações geográficas nunca tinham feito. E resta por último assinalar também que a figura de Indiana Jones se inspira, de maneira pornograficamente explítica, na de Charlton Heston num obscuro filme de 1954, Secret of the Incas, mais uma entrada nessa mesma tradição — a mesma tradição de outros títulos, no cinema, como o de Alan Quatermain nas minas do Rei Salomão, algumas incursões de detectives como Hercule Poirot e Sherlock Holmes em mistérios do oriente, e todo o mundo de “perdidos e achados” dos westerns americanos.

Os três filmes iniciais da série protagonizada pelo aventureiro Indiana Jones, Raiders of the Lost Ark, Temple of Doom e The Last Crusade, representam assim, quer na imaginação quer no sentido crítico da maioria das pessoas, obras quase perfeitas dentro do revivalismo desse género, ligeiramente distintas entre si mas suficientemente coerentes, produzidas precisamente numa década, a de oitenta do passado século, marcada também por um ressurgir do optimismo americano que, politicamente, levou tanto à recuperação e reforço do modelo moral, político e económico desse país como também ao colapso do seu maior rival. É nessa década que este fantástico optimismo quer dos produtores quer dos protagonistas da série se inscreve.

Mas, mais tarde, já na primeira década do novo milénio, a entrada anterior desta série, dissonantemente entitulada Kingdom of the Crystal Skull, foi marcada por evidente desleixo da parte de todos os seus responsáveis: argumentistas, realização e produção, e actores. Curiosamente os críticos trataram-na com muita benevolência, mas a maior parte dos espectadores, e não apenas os típicos fãs indefectíveis que nunca são inteiramente agradadados com nada, desde logo reconheceu que havia algo de errado com o comprimento de onda desse filme. Os responsáveis, conforme o costume da indústria de Hollywood, salvo uma excepção ou outra, não se “descosem” e defendem proficuamente o filme até ao fim. Mas, das poucas declarações que temos sobre o assunto, tudo aponta para que a raiz do problema residisse no argumento: a história era fraca, mal estruturada, mal sequenciada e sem destino claro — uma condição que é sempre requisito principal nestes filmes de aventuras, cuja estrutura permite o rocambolesco e o imprevisto apenas com um objectivo material ou moral muito bem definido no argumento.

Chegamos assim ao presente, no ano de 2023, em que, após todas estas experiências, as primeiras três munidas do optimismo da época, e a última absolutamente perdida no dealbar do novo milénio, a quinta tem finalmente a oportunidade de fazer uma reflexão sobre si própria ou, pelo menos, vestir-se à vontade com essa pele e construir um filme de aventuras normal sobre essa substância. De facto, de acordo com esse objectivo, o filme é estruturalmente perfeito, o que só também nos serve para lembrar e para dizer que nem os filmes nem a obra em qualquer meio é constituída somente por “estrutura“. Alguns exemplos: a sequência inicial da película retrata o final da segunda guerra mundial, fechando esse capítulo na história da vida da personagem; o filme é, no seu todo, sobre o tempo e a personagem principal encontra-se no crepúsculo de vida; o cenário mediterrânico é aquele que mais se aproxima do conceito de “clássico“ tanto na cultura vigente como na do protagonista; nenhuma das sequências de aventuras é propriamente cópia de outras anteriores, nem parecem irrelevantes no enredo deste título em particular; a aproximação final da película ao território do sobrenatural é convincente e retrata de forma correta o protagonista munido do espanto do costume.

Mas, tal como acima foi dito, como os filmes não são só estrutura e reuniões de elementos dispostos corretamente, com a medida certa, na ordem mais adequada, tentemos então desenvolver como é que a película vale por si só e não depende nem de fórmulas quase químicas de misturas de ingredientes precisos nem de reciclagens de formas anteriores, reciclagens meramente fotocopiadas.

Se a disposição dos tópicos do argumento parece perfeita — o tempo, a passagem do tempo, a manipulação do tempo, — e a aplicação dos mesmos a várias dimensões da ficção — quer ao mundo dos actores, onde Harrison Ford se vê rejuvenescido na sequência inicial correspondente a um período temporal muito anterior ao da actualidade do filme, quer no mundo ficcional, onde o vilão sonha com, à semelhança de neo-extremistas do mundo de hoje, regressar atrás no tempo e corrigir o rumo da história à sua medida — por outro lado certamente pode ser posto em causa o encadeamento dos mesmos, o doseamento de atenção e de diversidade em cada uma das sequências narrativas, maioritariamente constituídas por pserguições e por cenas de suspense e thriller, como é próprio do género. Esta eventual crítica, porém, não parece ter terreno fértil onde pegar: dada a estrutura perfeitamente irrepreensível do tópico, a sua adequação à dimensão ficcional e não ficcional, e a linguagem de câmara e montagem decentemente articuladas na película, tudo parece bater certo.

É claro que a crítica notou que existe um esforço, e também um à-vontade, para nesta entrada da série dar um pouco mais de profundidade emocional à personagem principal, facilitada aliás de certo modo pela sua idade mais avançada. Mas objetiva e tecnicamente as coisas breves onde se nota que esforço foi feito não diferem muito daquelas existentes nos três primeiros filmes da série. A personagem não é, assim, nem nunca foi, nem é suposto ser, propriamente muito densa e complexa; existe como criatura semi-unidimensional com ligeiro talento para ficar tanto atrapalhado como espantado com o inesperado de alguns obstáculos e, ao mesmo tempo, está construída sobre uma base atraente para a civilização pós industrial, aquela em que um homem erudito e académico consegue ser ao mesmo tempo rústico, braçal e situacionalmente improvisado.

Pode dizer-se, por um lado, numa perceptiva reducionista e desmerecedora, que este filme meramente elenca sequências de aventuras rapidamente resolvidas, cada uma como pequena curta-metragem demonstrando determinado cenário específico e uma série de truques usados pelos protagonistas para lidarem com o mesmo. Mas, mais uma vez, era esse perfeitamente o caso com os três primeiros filmes da série e, também aí, tudo está igual: nada existe nessas mesmas sequências que as condene como particularmente repetitivas, particularmente irrelevantes ou absolutamente inócuas para o argumento — ao contrário do que por vezes acontecia com o enredo bastante mais fraco da anterior entrada da série.

Dito isto, poderia dizer-se que estes filmes, ou este tipo de filmes, são formulaicos e dependem simplesmente do seu enunciado de uma forma forma bastante previsível e até simples e redutora, no sentido de serem entradas secundárias de pouca importância no cânone da arte cinematográfica. Sim e não: se, no futuro, ou mesmo no presente, em revisões mais alargadas deste tipo de obra, encontraremos ou encontramos já a série Indiana Jones como fazendo parte de um muito mais variado e vasto leque de entradas no género de filme de aventuras exóticas — sendo que possivelmente até algumas das quais possuem aqueles elementos mais apreciados pela crítica commumente, como a densidade de enredo, de temas, de complexidade psicológica das personagens, ou a pura superior qualidade estética do trabalho de câmara e de realização em geral — o certo é que as entradas menores no género, como é bem possível que, afinal, a série indiana Jones o seja, existam numa dimensão muito anterior, muito mais coesa e muito mais importante, definindo-o, construindo-o e substancializando-o bastante mais do que aquelas com pretensões (muitas vezes bem sucedidas e validadas pela crítica pelo público) de obra de arte superior, aquelas que entram no terreno da erudição e da alta arte (highbrow, erudita, como preferirem); tal como, por exemplo, os romances de Mickey Spillane são mais importantes para o género policial do que as experiências de Philip Roth ou Don DeLillo, ou como todos os policiais de série B são mais relevantes para esse género do que o Alphaville de Godard ou alguns de Fritz Lang ou Orson Welles. Deixamos aqui, assim e afinal, um elogio ao filme pequeno, despretensioso, tecnicamente e conteudisticamente correcto e adequado à dimensão germinal e definidora de todo o género. Este é, como os três primeiros filmes da série, um excelente filme.

Uma última nota: a nostalgia e mitomania cinéfila acérrima dos “fãs”, que leva grande parte deste tipo de rejuvenescimentos de personagens e séries cinematográficas ou literárias antigas a sofrerem crítica extensa e insuportavelmente pormenorizada — algo quase ao nível do autismo e do solipsismo de pessoas que cresceram com certas propriedades intelectuais, como Star Wars, Sherlock Holmes, Lord of the Rings ou Indiana Jones, como mitos fundadores da sua imaginação pós-moderna — não é algo, de modo geral, para levar a sério. É certo que este tipo de gente pode ser satisfeita, ou seja, não é impossível construir um produto que os deixe contentes — a eles que, na sua vida adulta, esperam em parte uma impressão que jamais será preenchida de recriarem sensações da infância ou adolescência quando absorveram pela primeira vez determinada fantasia aliás a essas faixas etárias primeiramente destinada — mas as razões que os levam a não apenas desconfiar ou não apreciar, mas a vorazmente detestar e odiar, determinadas reconstruções de produtos a eles queridos noutros tempos são razões maioritariamente pouco interessantes, pouco racionais e pouco reais. O Último Jedi, por exemplo, foi um filme extraordinário que, de modos muito semelhantes, como se pode ler nalgumas críticas, tomou todos os tópicos envolvidos na recriação dos westerns espaciais de Star Wars e os dispôs numa visão franca e honesta, uma visão para adultos, não deixando o drama de parte. Foi, no entanto, apesar de forma inteligente, muito bem recebido pela crítica, o que nem sempre acontece, dinamitado ainda assim por esses “fãs” presos numa qualquer infância ou adolescência neo-milenar, fenómeno nada incomum nos dias de hoje em que homens de trinta ou quarenta anos passam ainda a maior parte do tempo livre a jogarem videojogos de consola. De facto existem certas diferenças de maturidade entre estas pessoas e aquelas que citavam de memória John Wayne — e, de facto, no panteão de canastrões cinematograficamente relevantes de Wayne, Charlton Heston e Harrison Ford, não encontramos um que se destaque propriamente pelas suas qualidades técnicas enquanto actor, mas isso não impedia que qualquer um dos três fosse e seja parte de obras cinematográficas enormemente relevantes, que tenham sido e sejam presenças no ecrã titânicas e dominadoras, e que dependa fundamentalmente da cultura e do gosto dos seus espectadores perceberem como o são, e que dependem de talentos próprios e não de números de entretenimento autistas que repitam sabores da infância. Esta é uma dimensão difícil de excluir do debate público sobre determinados títulos, mas que deve ser ao máximo possível empurrada para o pátio do recreio das crianças e o mais longe quanto exequível tanto do trabalho crítico sério como do visionamento saudável de uma película da sétima arte.