Disse à minha mulher: “Querida, vou ao escritório, tenho de atualizar o meu CV”. E nunca mais me voltaram a ver.
Havia um CV para cada ocasião, para cada público, para cada momento do dia. Para casamentos, baptizados e divórcios. Cocktail ou casual chique.
Um CV longo, um curto, um intermédio; com foto ou sem foto; um gordo com todos os diplomas e certificados; um magro, só pele e osso, mas ainda assim o seu próprio esqueleto. Um parágrafo, uma página, três ou dez; 1000 palavras ou 6000 caracteres ou 2313 sílabas; contando ou não contando espaços. Um em Times New Roman porque é uma fonte redonda e pequena, agradável de ler e cabe sempre mais texto em menos espaço; outro em Arial, que é a sua preferida, executiva e funcional; ou no tipo de letra das minutas de turno, é irrelevante na realidade.
Um CV em ordem cronológica direta, passado glorioso; outro em ordem cronológica inversa, triunfante presente; e outro narrativo para dar contexto. Um para quando és um jovem estudante, outro para quando és um jovem investigador, outro para quando és um investigador independente, outro para quando atinges a maturidade, outro para quando te tornas um gestor. Um currículo para entrar na tua instituição, um para a contabilidade da tua instituição, um para as promoções internas da tua instituição. E outros alternativos no caso de querer mudar de instituição.
Um CV com dados bibliométricos, outro sem eles, mas tenha atenção: os seus índices podem ser calculados de várias formas, pelo que é melhor indicá-los todos. Um currículo centrado na vertente pedagógica, um na vertente da investigação, um na vertente da divulgação, um na vertente da gestão. Um com tudo o que fizeste, incluindo os empregos de vendedor em lojas de roupa, de repartidor de pizzas ou de telefonista, em que tanto sofreste; e outro sem eles, porque não são empregos muito especializados e não são relevantes para o teu emprego atual (= que raio interessa quem pagou os teus estudos?). Mas isto não significa que te devas esquecer de indicar as tuas dificuldades pessoais, por exemplo, se tens filhos, se cuidas dos avós ou se perdeste um familiar próximo. São sempre uma boa oportunidade para mostrar a tua capacidade de superação e de sacrifício na tua vida profissional.
Um curriculum vitae, um resumé, um biosketch, um pitch, um modelo europeu e um modelo americano. Muitos com nomes estranhos: ORCID, Scopus, ResearcherID, CiênciaID, DeGois, FCT-SIG, Biblios, Census. Um CV para revisão de artigos (Publons), um CV nas redes (ResearchGate, Academia), um site com o seu CV, redes sociais para registar e promover o seu CV. CVs que falam entre si, mas com linguagens diferentes: o que uns chamam projeto outros chamam contrato, o que uns chamam bolsa outros chamam prémio, e assim também se perde tempo a rever duplicados, a corrigir a máquina, a transformar o automático em manual.
Currículos que me procuram na Internet, que me perseguem e que me encontram. É o F. Herrera que é citado em artigos sobre a melatonina? Federico, foi citado. Foi mencionado. Apareceu em 67 pesquisas. Quatro novas citações dos seus artigos. Cinquenta e três pessoas interessaram-se pelo seu perfil. Federico, melhora a tua visibilidade convidando os teus colaboradores para esta plataforma. Federico, conheces o John Smith, da Universidade de Nova Iorque? Contacto recomendado. As vossas redes têm 321 pessoas em comum.
A minha vida espalhada em pedaços por entre todos os currículos, como as Horcruxes de Voldemort na saga Harry Potter. Ou concentrada em currículos ambiciosos, aspirando à unidade: “Três currículos para os Reis Elfos debaixo do céu. Sete para os senhores anões em palácios de pedra. Nove para os homens mortais condenados a morrer. Um para o Senhor do Escuro, no trono escuro na Terra de Mordor onde as Sombras se espalham. Um currículo para os governar a todos. Um currículo para os encontrar, um currículo para os atrair a todos e os prender na escuridão.” My precious.
My precious: quanto dinheiro ganhaste? Quanto produziste? Com que qualidade? Qual foi o impacto? Quantas escolas visitastes? Quantos alunos formaste? Que notas obtiveram e o que estão a fazer hoje com as suas vidas? Não deixe de registar, não se esqueça de ter tudo atualizado, não perca uma única linha, nem uma ocasião para engordar esse documento, porque o mundo é ingrato, e você é o maior interessado em que tudo o que faz (TUDO) seja valorizado…
…por pessoas que o conhecem apenas pelo seu currículo.