Terão sido a Revolução Social de 1383-85 e o 25 de Abril de 1974 processos históricos comparáveis? Sim, digo, em face de um conjunto de factores semelhantes e quanto a mim susceptíveis de analogia formal e de substância. A razão pela qual acredito na pertinência científica e ontológica desta questão prende-se com uma razão essencial – a extrema analogia efectivamente erigida entre ambas as rebeliões que redundaram em revoluções. Com efeito, separados por 591 anos, ambos os processos partilham valências às quais, direi mesmo, não tem até ao presente sido dada a devida atenção. Desde logo as razões genético-sociais inerentes a ambos os momentos: de um lado uma sublevação classista, protoburguesa, socialmente empenhada mas numericamente restrita, a de 1383; do outro um pronunciamento militar assente na satisfação de um pequeno mas significativo conjunto de reivindicações profissionais de um grupo não alargado embora corporativamente unido e ideologicamente progressista. Tanto no caso de Abril de 74 como 1383, emerge como particularmente relevante o facto de os principais protagonistas do golpe/revolução assumirem a vertente de classe e de insatisfação profissional como razões absolutamente decisivas para o eclodir e provocar dos processos em que se envolveram e isso é evidente tanto nos mercadores que estão com D. João I como entre os capitães de Abril. Depois, as lideranças, protagonizadas nos diferentes momentospor dois comandantes indiscutíveis. De um lado, D. João, mais tarde Mestre de Avis e D. João I, que assassina o conde Andeiro, amante de D. Leonor Teles, dupla que se aprestava para entregar o reino a Castela; e do outro, Salgueiro Maia, o operacional anti-herói que enfrenta os canhões no Terreiro do Paço, derrota um brigadeiro na Ribeira das Naus, verga a GNR no Largo do Carmo e prende Marcello Caetano. Finalmente o terceiro denominador comum, que permite desenhar, diria quase a régua e esquadro, a transformação, em ambos os casos em apenas 24 horas, de um gesto maquinal, definido, objectivo e determinado por uma minoria que, por força da adesão e pressão populares, redundou, mais uma vez, sublinho, em ambos os processos, numa revolução que não começou mas acabou por sê-lo. Quanto à génese social da Revolução de 1383-85 há um autor que revela a sua tendência clara para uma interpretação inteiramente popular e massificadora do evento e que é António Borges Coelho. Claro que esta visão se prende com o facto de se tratar de um investigador assumidamente comunista e marxista e, assim, muito mais sensível ao peso do vórtice das camadas em detrimento da especificidade deste ou daquele interesse, desta ou daquela elite ou grupo de comando. Esta visão, total quanto à adesão e importância e influência populares, perde fulgor em autores como José Mattoso e Joel Serrão. Já sobre a revolução de Abril poder-se-á teorizar sobre as diferenças conceptuais nela existentes entre putsch, golpe de Estado, revolta, sublevação militar e revolução. É bem verdade que, a este respeito, a Revolução dos Cravos suscita as mais diferentes interpretações, pois “não foi um golpe de Estado militar clássico […]”, mas sim uma “sublevação militar”, depois “golpe de estado” que se apoiava “num vasto movimento popular” ou mesmo “rebelião”, como defendeu Foubert. Por isso, a Revolução há-de adquirir desde logo um carácter nacional, social e popular. Tanto em Abril de 74 como em 1383 a luta pela independência nacional funde-se com a luta contra os privilégios das classes mais altas, com vista à obtenção do poder político. Ambas as revoluções, ambas burguesas e pequeno-burguesas, se identificam assim com a luta pela independência nacional. Uma contra o duro autoritarismo imposto por Oliveira Salazar, outra pela defesa da soberania, as duas em nome do povo, embora manipuladas por novos grupos liderantes: em 1383, os burgueses e mercadores ricos; em 1974, uma plêiade de oficiais que ambicionam poder transferir o exercício de um novo poder no quadro de um regime democrático.
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