A nossa edição deste mês: oito artigos inéditos, revistas para adultos, Bildungsroman, Weil, Wilde, Oxford English Dictionary, o senhor “Hilter”, eat ze bugz, e uma entrevista ao director.
Começamos com um excelente ensaio de Miguel Furtado sobre como o respeito pela própria dignidade humana enquanto valor jurídico deve ter como seguimento uma ética face a espécies sencientes não-humanas; depois, uma descrição de pontos de contacto entre a filosofia oriental e a tese do perspectivismo do autor alemão Friedrich Nietzsche, de Manuel P. Fernandes.
De seguida, um artigo sobre os diálogos que os conceitos de estado e propriedade encontram nas obras dos dois pensadores europeus Hobbes e Marx; depois, mais um artigo: através de Rivette, Haraway e Miorzoeff, aborda-se o filme 12 Angry Men; a justiça e as leis do cinema concorrem para o amadurecimento de uma absolvição silenciosa dentro de uma sala de jurados não necessariamente silenciosos, da autoria de Tiago Cravidão.
Um breve artigo sobre o Maga Hat: como o mesmo é símbolo agregador e insere- se na história de itens de roupagem, nomeadamente chapéus, enquanto emblemas ou “fachos” identificativos de uma tribo, de José Eduardo Patrocínio.
Ainda, uma segunda entrada de Cláudia Zafre (@claudiazafre) sobre itens musicais raros e exóticos, desta feita, atendendo a uma análise de Katie Lee, Akiko Yano e Sinead O’Connor.
Vinho e os relógios podem pertencer a mundos muito distintos; porém, encontrámos dois pontos principais em comum: o envelhecimento e a personalização; uma crónica de Nuno Lopes Margalha em parceria com o Instituto Português de Relojoaria. De resto, sobre a Impulse! Records, chancela lendária do jazz: desde as origens, fundação e sucesso inicial da editora, passando pela fase do produtor Bob Thiele, até de 1969 em diante, com texto de Sofia Alexandra Carvalho.
Revista Minerva Universitária: uma revista para adultos
Dado que a nossa postura editorial trata os nossos leitores como pessoas inteligentes e maduras, ao contrário de muita imprensa comum e até de alguma especializada, cada vez mais é correcto dizermos que somos uma “revista para adultos”. Para adultos que pensam, que têm um espírito crítico ativo, que não se deixam fechar em visões polarizantes e binomiais de qualquer assunto que seja, adultos que se revêem perfeitamente no espírito pluralmente universitário que encarnamos, pois acreditamos que as universidades são de facto lugares para adultos e não para crianças. Aproveitámos a data especial do passado 25 de Abril, que para nós é também um dia como todos os outros, para notar e lembrar isso. É nesse espírito que continuaremos a falar de todo e qualquer tipo de tópico com massa crítica proficiente, importando-nos maioritariamente as reacções dos adultos e não as das crianças. Continuaremos a falar de idade média, presunção de inocência, assassinos e criminosos, raças e culturas, marxismo e capitalismo, activismo e “activismo“, vegetarianismo e religião, assédio e romance, identidade e dissolução da identidade, o “paradoxo da tolerância“, mudança de género, mudança de sexo e mudança de orientação sexual, Portugal e a Europa, modelos democráticos, escravatura, colonialismo e desenvolvimento, direitos individuais e liberdade de expressão e pensamento, obsessão-compulsão, narcisismo e superioridades morais, ditadores nacionalistas e ditadores comunistas, saúde mental, racismo a sério e racismo a fingir, ignorância e incompetência do trabalho jornalístico, redes sociais, privacidade e cultura. Partilhamos assim três capas das revistas Playboy, Hustler e Gina, respectivamente a revista para cavalheiros, a popular (muito mais “porca”) e a portuguesa. É então com alguma liberdade metafórica que nos assumirmos também como “revista para adultos“ e com muito orgulho em pertencer a essa tradição.
Bildungsroman —
o “romance de formação”
O termo Bildungsroman (“romance de formação), nome pelo qual é conhecido genericamente este género literário, foi cunhado em 1819 mas só no final desse século e da respetiva produção literária é que se popularizou junto do público em geral e da crítica. O enredo, quer decorra em períodos de tempo extensos ou retrate apenas um período mais selecto, tipicamente contém eventos fundamentais da transição da adolescência para idade adulta que moldam o carácter e personalidade do ou dos protagonistas. Uma das entradas germinais desta espécie de texto é Os anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, mas tantos outros exemplos podem ser enunciados, desde David Copperfield ou Grandes Expectativas de Dickens, O Adolescente de Dostoyevsky, A Educação Sentimental de Flaubert, Retrato do Artista enquanto Jovem de James Joyce, Em Busca do Tempo Perdido de Proust, até mesmo à sua adaptação moderna no filme de formação, particularmente do tipo adolescente — Ferris Bueller, Juno, Good Will Hunting, Dead Poets Society, etc. Eis aqui mais alguns exemplos, que agradecemos à professora Elisabete M. Sousa, a mais notável kierkegaardiana portuguesa, o elenco:
Machado de ASSIS, Dom Casmurro (1900). Edição em Portugal: Relógio d’Água.
‡Honoré de BALZAC, Illusions perdues (1843). Trad. Portuguesa: Companhia das Letras.
Pio BAROJA, Camino de perfección (1902). Sem tradução portuguesa.
Thomas Carlyle, Sartor Resartus (1836). Sem tradução portuguesa.
‡Charles DICKENS, Great Expectations (1860-61). Trad. Portuguesa: Publicações Europa-América.
‡Fiódor DOSTOIEVSKI, Podrostok, [O adolescente] (1875). Trad. Portuguesa: Editorial Presença.
‡George ELIOT, Middlemarch (1872). Trad. Portuguesa: Relógio d’Água. Elena FERRANTE, L’amica geniale. Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
Gustave FLAUBERT, L‘éducation sentimentale (1869). Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
E. M. FORSTER, Maurice. Trad. Portuguesa: Livros Cotovia.
Jane GARDAM, Old Filth (trilogia: 2004-2013; ou apenas o 1º vol.). Sem tradução portuguesa. Johann von GOETHE, Wilhelm Meisters Lehrjahre (1795-1796). Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
James JOYCE, A Portrait of the Artist as a Young Man. Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
Kazuo ISHIGURO, Never let me go (2005). Trad. Portuguesa: Gradiva.
Clarice LISPECTOR, Perto do coração selvagem. Edição em Portugal: Relógio d’Água.
‡Thomas MANN, Der Zauberberg (1926); ou Buddenbrooks (1900). Trad. Portuguesa: Gradiva.
Robert MUSIL, Die Verwirrungen des Zöglings Törleß (1906). Trad. Portuguesa: Público, Colecção Mil Folhas.
‡Marcel PROUST, À la recherche du temps perdu (1913-1927).Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
Eça de QUEIRÓS, A Cidade e as Serras (1901). Várias editoras.
Rainer Marie RILKE, Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge (1910). Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
Philip ROTH, Goodbye, Columbus (1959). Trad. Portuguesa: D. Quixote.
Jorge de SENA, Sinais de Fogo (1978). Bertrand.
Lev TOLSTOI, Kavkázskaia póvest [Cossacos. Novela do Cáucaso] (1863). Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
VOLTAIRE, Candide ou l’optimisme (1759). Trad. Portuguesa: Tinta-da-China.
Oscar WILDE, The Picture of Dorian Grey (1890). Trad. Portuguesa: Relógio d’Água.
Qual é o Problema com o Padrão dos Descobrimentos?
Há pouco tempo, o Vaticano divulgou os selos comemorativos das Jornadas Mundiais da Juventude de 2023 em Portugal. A imagem é habitual neste tipo de evento: a sua ética e personagens, assim como a homenagem ao país anfitrião. Optou-se pela figura do papa e de várias faixas etárias de jovens cavalgando
um conhecido monumento português. Aparentemente, para grande surpresa de muitos de nós, há uma porção possivelmente conservadora de pessoas que acham que a mera evocação do período dos Descobrimentos, além da referência ao monumento em concreto, é uma coisa muito ofensiva. Surpreendem dois aspectos desta atitude: primeiro, saber que muitas desta gente, há 5 ou 10 anos, nada achariam de estranho neste arranjo; segundo, o facto de o monumento, apesar de esteticamente discutível, de modo muito objetivo em termos de conteúdos nada ter de polémico: não há nenhuma celebração de “opressão“, nenhuma glorificação de morte e sangue, mas apenas o desenho de gosto discutível de uma caravela, com uma série de super-heróis versão “manga”, empoleirados, virados para o mar e para a exploração marítima. Tendo em conta dois factores — o primeiro, que todos os povos sem exceção nenhuma à face da terra enveredaram por expansão cultural e militar e, segundo, que o monumento em si não tem nada de objetivamente ofensivo para ninguém — é absolutamente bizarra, intempestiva e mentalmente desregulada qualquer tipo de indignação berrante com uma criação gráfica tão normal. Assim, lançamos com sinceridade a pergunta: qual é concretamente o problema com o padrão dos descobrimentos? Vamos só terminar lembrando que não só ao longo da história mas também no presente não há inocentes à face da terra, e que toda a literatura universal nos ensina isso. Podemos, a propósito do evento em concreto, citar a frase cristã bem conhecida: “vês o cisco no olho do teu irmão mas não vês a trave no teu próprio olho“, embora baste a qualquer pessoa passar os olhos pelos cânones de outras culturas e religiões para encontrar conteúdos absolutamente idênticos. Pedimos, assim, mais humildade, mais racionalidade e menos histerismo e caça às bruxas inócua. Juízo e corações ao alto!
Uma Conversa sobre a Revista Minerva Universitária
Partilhamos o registo da entrevista realizada por Ana Vieira Vicente ao mais proeminente do triunvirato de directores da Revista Minerva Universitária, João N.
S. Almeida, versando precisamente esta publicação. Falou-se dos objectivos a curto e médio prazo da revista, o seu propósito, o seu leque de actividades, o seu
público e os seus autores. A Ana, nossa colaboradora, é uma excelente conversadora e recomendamos as suas outras entrevistas a várias pessoas, em geral pautadas por uma vertente cultural, que podem seguir no seu canal de
Instagram em https://www.instagram.com/ana.vieira.vicente/.
Sugestões: Weil e Wilde
Face a atitudes maniqueístas que opõem categoricamente o bem ao mal, ou a verdade à mentira, munidos do mesmo grau de desconfiança que Simone Weil reserva a expressões de pensamentos precedidas, de forma implícita ou explícita, pela palavra «nós», recomendámos a leitura de um dos textos mais conhecidos da filósofa mística francesa: «Nota sobre a Supressão Geral dos Partidos Políticos».
Simone Weil dá o tiro de partida para este breve mas irresistível argumentário contra a peste das paixões colectivas cometendo a audácia de corrigir o pensamento de Rousseau a respeito da vontade popular. Segundo a análise deste, as vontades particulares, pela sua própria natureza e dimensão individuais, tendem a neutralizar-se e a compensar-se mutuamente, desaguando numa vontade popular que melhor se adequa à justiça do que aquelas. No entanto, no instante em que a paixão colectiva passa a participar nesta equação, da qual se ausentara durante o raciocínio de Rousseau, a equação desaba. A justificação de Simone Weil é a mais transparente: «As paixões divergentes não se neutralizam, ao contrário do que acontece com uma poeira de paixões individuais fundidas numa massa; o número é demasiado pequeno, a força de cada uma delas é demasiado grande, para que possa haver neutralização.» A simples existência de partidos políticos, angariações de paixões colectivas por excelência, cobre de espinheiros o caminho do indivíduo. O militante é comparado a um homem incumbido de fazer cálculos mentais complexos sabendo que será chicoteado de cada vez que obtiver um número par. «Alguma coisa na parte carnal da alma incitá-lo-á a arranjar maneira de obter sempre um número ímpar.» Quanto ao insubmisso, «arriscar-se-á a encontrar um número par mesmo onde ele não é suposto existir. Face a esta oscilação, a sua atenção deixa de estar intacta. Se os cálculos forem complexos ao ponto de exigirem da sua parte a plenitude da atenção, é inevitável que se engane frequentemente. De nada servirá que seja muito inteligente, muito corajoso, muito empenhado na verdade.» Um sistema no qual um indivíduo, tendo optado por determinada opinião, se recusa a examinar uma contrária, configura assim a transposição do espírito totalitário. A agressão perpetrada por pessoas honestas contra pessoas inocentes em nome de um espírito partidário parece ser, para a autora, condição suficiente para a repressão desses organismos. Tal supressão – e cabe aqui sublinhar que o texto, embora sugestivo, corre omisso quanto à sua concretização – não poderia, no entender de André Breton, resultar de um golpe de força sem uma absoluta
desnaturação, mas conceber-se após um longo trabalho de desengano colectivo. Não obstante esta lúcida ressalva, não deixa de ser curiosa a recepção entusiástica de Breton, fruto porventura de um longo trabalho de desengano pessoal. A convergência neste ponto particular de um espírito surrealista e de um outro assaz desdenhoso das faculdades da imaginação não representa anomalia alguma, e ainda menos quando comparada com o exemplo exposto no texto:
«Quantas vezes na Alemanha, em 1932, um comunista e um nazi, discutindo na rua, se viram tomados de vertigem mental ao constatar que estavam em acordo em todos os aspectos!»
Para os mais indefectíveis afiliados, propomos, da mesma editora, um livro igualmente breve de Roland Topor.
Recordámos ainda o famoso ensaio de Oscar Wilde, uma apologia ao que se reconhecia na altura como um regime socialista, sublinhando em especifico o seguinte ponto: Wilde, o dandy preguiçoso por excelência, compôs esse elogio precisamente porque para tal figura a vida perfeita era ter o estado a tratar de tudo por nós. Este é apenas um ponto entre muitos que o ensaio contém, e cuja
leitura recomendamos.
Cinema: Eat ze Bugz, Mr. Hilter e o Oxford English Dictionary
Num tempo em que a ideia de introduzir conteúdos proteicos derivados de insectos e até mesmo a própria criatura nas nossas dietas, prática que é comum nalgumas culturas asiáticas e não só, e independentemente — por ora — de qualquer juízo de valor sobre este desígnio, é óbvio que só poderíamos lembrar a lendária cena de terror/comédia/aventura do filme Temple of Doom, de Steven Spielberg, de 1984, com Kate Capshaw, actual esposa do realizador, a navegar uma miríade de grande variedade desses seres na tentativa de salvar o galã Harrison Ford da morte certa. Estando também todos nós nas antevésperas da estreia de mais um filme protagonizado pelo aventureiro Indiana Jones, recomendámos de modo geral e a todos os níveis cautela com este tipo de bichos.
Quisemos lembrar como nos dias de hoje é mais difícil brincar violentamente com certos assuntos, como, por exemplo, a II Guerra Mundial, o regime Nazi e todos os seus elementos facilmente caricaturáveis — os excelentes uniformes de Hugo Boss, os trejeitos teatrais e exagerados da retórica discursiva, o elenco de
pobres tolos que compunham as suas cúpulas — do que em 1962, apenas vinte e tal anos depois do final da segunda grande guerra. Hoje, esta extensa e genial caricatura de John Cleese, dos Monty Python, em relação à figura do fuher Adolfo seria vista com ares muito mais fantasmagóricos, assustadores, de quem “passa pano” no nazismo, como se costuma dizer, do que na mais germinal década de 60, tanto em relação a humor como a outras revoluções culturais de vanguarda.
William Chester Minor, médico, nascido em 1834 nos Estados Unidos, combateu na guerra civil americana e, mais tarde, emigrado em Inglaterra, padecendo de stress pós traumático, acabou por ser preso e submetido a uma instituição psiquiátrica. Foi a partir desse período que se deu o seu muito curioso contributo para a criação do Oxford English Dictionary: durante o seu internamento, enviou milhares de entradas lexicográficas para o trabalho de recolha em curso e notabilizou-se como o seu mais rico contribuidor. Esta estranha personagem foi recentemente homenageado em filme através do trabalho de Mel Gibson, sempre interessado em “aves raras“, Sean Penn e do realizador/argumentista Farhad Safinia.
Submissões
Desejamos, por fim, um bom trabalho para todos e um feliz mês de Maio cheio de um início de Verão bem português e voltamos também a endereçar o convite para nos enviarem propostas de artigos, em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia. Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui. Até breve!
Retrato de A’Lelia Walker (1885-1931), filha de uma das primeiras multi- milionárias negras norte-americanas, Madam C. J. Walker, e patrona das artes no Harlem nova-iorquino do início do século.