Edição: Março 2023

A nossa edição deste mês: seis artigos inéditos, a pílulaa mulher no ensino superior, a história da escravatura e a do jornalismo, as Vidas Paralelas de Salazar e Fidel Castro, os mundos de fantasia de Rowling, Tolkien e Lucas, a dificuldade em distinguir entre notícias reais e paródia, e mil e uma sugestões de cinema sobre nazis, argumentistas de filmes e stalkers.

Primeiro, um ensaio sobre a figura das ninfas no período clássico grego em conexão com o período contemporâneo, de Gilmar Kruchinski Júnior, e um outro sobre sobre como cada um dos títulos da Carta Dos Direitos Fundamentais da UE corresponde a e desenvolve os vários valores subjacentes à construção europeia, de Fátima Pacheco.

Um artigo sobre várias metáforas e alegorias relacionadas com a figura feminina na obra nacionalista de Pessoa, de João Miguel Santos. E outro sobre a filosofia processual (por oposição à substancial) de Alfred North Whitehead e a sua aplicação à ética do ambientalismo e do anti-capitalismo contemporâneo, de Gonçalo B. Martins.

Uma crónica de Ricardo Fortunato sobre como a concepção portuguesa de bem material associa-o não a processos concretos que o trazem à existência, mas a uma materialização da metafísica, com contornos de moral judaico-cristã miserabilista e de comiseração erótica na pobreza. E uma outra breve crónica de Miguel Oliveira sobre as impressões do escritor americano John Dos Passos acerca do famoso arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer e da cidade de Brasília.

Mulher e Mulher

Dia da mulher? Mês da mulher? Não ligamos muito a este tipo de efemérides — hoje todos os dias são “dia internacional de alguma coisa” —, desde os avós, aos padrinhos e aos canários, e preferimos reger-nos pelo calendário do que nos passar pela cabeça em dado momento. Só que, neste caso, de facto, coincidiu a apresentação de duas peças relacionadas precisamente com o tópico.

Primeiro, quisemos abordar um item médico de importância vital na emancipação da vida da mulher desde há setenta anos para cá: a pílula contraceptiva, com duas ou três perspectivas hoje pouco lembradas. Primeiro, nos dias de hoje não se tem a mínima noção da revolução que esta inovação tecnológica trouxe à autonomia sexual das mulheres. É um dado adquirido tão naturalizado que já nem nos lembramos do fundamental: a pílula contraceptiva permitiu à mulher ter liberdade de ter relações sexuais com quem bem entendesse por sua autonomia e responsabilidade, sem ter de exigir ao homem coisíssima nenhuma.

Efectivamente pode dizer-se que há uma vida sexual, um feminismo e quiçá uma mulher antes e outra depois da pílula contraceptiva. Hoje fala-se mais da parte da “responsabilidade” inclusive tendo em conta as consequências clínicas do uso da pílula, mas esquece-se completamente a parte da “autonomia“: a pílula permitiu às mulheres não terem de depender do homem para coisíssima nenhuma no que a esse aspecto diz respeito.

Outra perspectiva a destacar é ter mitigado a gravidez indesejada e os abortos quer nas classes baixas quer nas mais abonadas: de facto, o primeiro grupo a ser emancipado foi o da mulher casada, de companheiro fixo; a pílula libertou-a do fardo das gravidezes sucessivas, aumentando também a sua mais valia como força de trabalho. Não é provável que tenha sido inventada para a dita emancipação, mas talvez primeiramente porque permitia a libertação do chefe de família de ter uma família enorme a seu cargo e de que a mulher nunca fosse uma fonte de rendimentos estável. Uma réstia da ética que presidia a esse modo de vida pode talvez ser ainda observada na resistência das religiões tradicionais à contracepção — embora o assunto seja mais complexo.

Por último, a pílula libertou também os homens da vasectomia, procedimento médico que nos EUA estava muito difundido e que hoje começa a ser novamente debatido como alternativa viável, dadas as preocupações contemporâneas com a sobrecarga química que a pílula impõe ao organismo feminino. Um argumento que por vezes é também debatido é se seria tão ou quiçá mais fácil terem inventado um método químico de contracepção que incidisse antes sobre o organismo masculino, mas não existem certezas quanto a isso. É provável que tecnicamente fosse de facto mais acessível impedir a ovulação do que neutralizar a fecundidade dos fluidos masculinos.

Mas sublinhamos novamente o primeiro apontamento, absolutamente fundamental: há uma vida sexual, um feminismo e quiçá uma mulher antes e outra depois da pílula contraceptiva. Esta é uma posição ainda bem presente em algumas feministas desse tempo, do tempo em que essas inovações tecnológicas começaram a ser comuns em Portugal e no resto do mundo. O feminismo é feito por fases e por vezes a fase seguinte esquece-se completamente da anterior, como tudo na vida.

Depois, abordámos também o tópico da presença dominante das mulheres no ensino superior, com três artigos sobre o papel das mulheres nas universidades ocidentais na contemporaneidade. O primeiro sobre como têm ultrapassado os homens quer em quantidade quer em resultados em várias especialidades de relevo. O segundo, um relatório com dados da Unesco. O terceiro com uma perspectiva céptica quanto à crescente feminilização do corpo docente e administrativo académico. Por último, uma monografia mais desenvolvida sobre a ascensão das mulheres no ensino superior.

A História da Escravatura e a do Jornalismo

Retomando um assunto que tínhamos abordado a certa altura, apresentamos aqui uma das obras mais robustas e centrais sobre a história do escravatura: a The Cambridge World History of Slavery. Citando o resumo da obra, “a escravatura é das instituições mais transversais da história humana, desde a antiguidade até, alguns dizem, ao tempo presente”. Os quatro volumes abordam assim toda a história da escravatura através de todos os períodos e todas as culturas registadas, contrariando visões unipolaridade e parciais da prática. Referimos também um livro sobre actual a decadência da atividade e da profissão jornalística. O autor não tem qualquer dúvida em apontar não apenas a superficialidade, o elitismo urbano, a falta de cultura e de inteligência do jornalista médio contemporâneo, mas também a avassaladora falta de liderança editorial nas redações.

Vidas Paralelas: Salazar e Fidel Castro, Hitler e Estaline

Pedimos emprestado o título das famosas obras de Plutarco, Vidas Paralelas, que retratavam semelhanças entre a biografia de figuras históricas gregas e romanas, para aplicar o conceito às pessoas dos ditadores Fidel Castro e António de Oliveira Salazar. Ambos políticos muito hábeis e de enorme longevidade no poder, ambos relativamente benevolentes, e ambos donos de alguns poderes retóricos não exactamente idênticos mas poderosos. Além destas semelhanças, temos anexas as diferenças já conhecidas: nacionalismo/internacionalismo, personalidade recatada/extravagante, conservadorismo/revolucionarismo. Este é um tema que mereceria um ensaio e sobre o qual convidamos todos os interessados a escrever. Partilhamos uma recensão da obra de Tom Gallagher sobre o português e uma pequena nota da Amnistia Internacional UK sobre o cubano. Lembrámos também o exercício semelhante, já tentado, na obra de Alan Bullock a propósito dos ditadores super-estrelas, Adolfo Hitler e José Estaline.

Rowling, Lucas e Tolkien

J.K. Rowling, George Lucas e J.R.R. Tolkien: três criadores de vastos universos ficcionais do género literário e cinematográfico da fantasia. Condensaram, respetivamente, nas obras Harry Potter, Star Wars e O Senhor dos Anéis variadíssimas influências culturais históricas, a maior parte das quais do ocidente, de modos ímpares e que ficarão seguramente na história da cultura popular de inspiração erudita do século XX.

A primeira, do mundo do folclore britânico e da mitologia nórdica em geral, além de alguns épicos e da tradição de literatura de fantasia; o segundo, da história política do Império Romano, da 2ª guerra mundial, algum Shakespeare (e adaptações cinematográficas do mesmo ao universo do Japão); e o terceiro, da mitologia Europeia, nórdica em específico, e literatura medieval.

São três criadores incontornáveis, centrais no mundo da ficção contemporâneo, e merecem toda atenção que os departamentos universitários da especialidade lhes puderem dar.

What News?

Porque hoje é difícil distinguir notícias verdadeiras de notícias ficcionais de brincadeira, deixamos aqui uma breve galeria com alguns exemplos. De facto, as publicações satíricas The Onion, Babylon Bee, Inimigo Público, etc., têm nos dias que correm grande dificuldade em concorrer com a realidade. Parte do motivo, é bom sublinhar, tem a ver com a politização excessiva da cultura, da sociedade e até dos próprios órgãos de informação.

Onze Sugestões de Cinema: Nazis, Argumentistas e Stalkers

Às sextas-feiras, como sempre, apresentámos cinema. E pensando numa maleita intelectual muito recorrente na raça dos “activistas“ urbanos, em geral padecendo de mitomanias e ignorância generalizada, tendentes a verem “nazis” e “fascistas“ em qualquer expressão que não esteja de acordo com a sua cartilha ideológica de trazer por casa, seja na Ucrânia seja em qualquer força de ideologia nacionalista na Europa e na América, existindo assim de modo febril como se estivéssemos em 1939, com o genocídio judeu e a invasão da Polónia à porta, entendemos ser de bom gosto, em prol da saúde desses paranóicos, recomendar obras de ficção fantástica sobre o tópico do “nazi“ contemporâneo. Temos então coisas desde a ficção científica até ao terror, começando pelos “nazis na lua“, continuando com os “nazis do fundo do pântano”, os “zombies nazis” e terminando com os “nazis no centro da terra”. Aliás, é importante mencionar que um dos títulos mais famosos desta paisagem de ficção veio do território dos videojogos, da saga Castle Wolfenstein. De facto, quer o apreço de algumas cúpulas nazis pelo misticismo e pelo oculto, como também os desenvolvimentos tecnológicos que empreendiam ou que estavam no seu início aquando da iminência da sua derrota na guerra, influenciaram este fio condutor da imaginação que junta ficção científica e o Terceiro Reich. É este o remédio que recomendamos a quem chama de “facho” e de “nazi” a tudo o que mexe: vão ver os filmes e entretenham-se.

Depois, trazemos não um mas três títulos que têm em comum o facto de terem argumentistas como protagonistas: e dois deles são baseados em pessoas reais. Primeiro, Trumbo, de 2015, retratando o período de caça às bruxas de Hollywood na década de 40 e 50, onde o comunista Dalton Trumbo foi obrigado a usar pseudónimos durante dez anos para conseguir trabalhar — e ganhou dois óscares com isso. Segundo, Mank, de 2020, sobre a luta de Herman J. Mankiewicz para ser creditado na monumental obra Citizen Kane, de Orson Welles. Terceiro, aqui já no campo da ficção, a inesquecível e surreal obra dos irmãos Coen, com interpretação de John Turturro, Barton Fink, de 1991. Foram estas peças que apresentámos, lembrando-nos o mundo subterrâneo do longo e extenuante processo de escritas e revisões por que passa um argumento nas grandes indústrias cinematográficas.

Por fim, destacamos um sub-género de filmes do tipo thriller, de série inferior, aparentemente populares após a década de 2000 e em geral feitos diretamente para televisão: películas que retratam perseguidores obcecados por determinada pessoa. Temos um médico obcecado pela doente, a aluna obcecada pelo professor, a secretária obcecada pelo patrão, e a amiga obcecada pela colega de quarto. Quatro obras com este nexo em comum, que devido ao seu carácter barato, acessível e parvo, passam muitas vezes nos canais de cinema das televisões: Stalked by My Doctor (TV Movie 2015), The Perfect Teacher (2010), The Perfect Assistant (2008) e The Roommate (2011).

Submissões

Desejamos, como sempre, um bom trabalho na universidade ou fora dela a todos. Está em aberto o convite para nos enviarem propostas de artigos, em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia. Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui. Até breve!

Retrato de Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, Baronesa de Aulnoy, também conhecida por Madame d’Aulnoy, foi uma autora francesa quinhentista conhecida não só por ter inaugurado o estilo moderno de conto de fadas mas também por ter procedido a vasta recolha da tradição popular desse género.