Excerto de Fernão Lopes sobre o sofrimento das gentes de Lisboa, no cerco de 1384

“Estando assim a cidade cercada da maneira que ouvistes, gastavam-se os mantimentos cada vez, pelas muitas gentes que em ela havia, assim as que se acolheram dentro do termo de homens aldeões com mulheres e filhos, como das que vieram na frota do Porto, e alguns se metiam às vezes em batéis, e passavam de noite escusamente contra as partes do Ribatejo, que já se achavam prestes, por recados que ante mandaram, e partiam de noite remando mui rijamente. Algumas Galés, quando os sentiam vir remando, isso mesmo remavam à pressa sobre eles, e os batéis por lhe fugir, e elas por os tomar, eram postos em grandes trabalhos. Os que esperavam por tal trigo, andavam por a ribeira da parte de Xabregas aguardando quando viessem, e os que velavam, se viam as Galés remar contra cá, repicavam logo por lhes acorrer. Os da Cidade, como ouviam o repique, deixavam o sono, e tomavam as armas, e saía muita gente, e defendiam-nos às bestas, se cumpria, e ferindo-se às vezes de uma parte e da outra, porém nunca foi vez que tomassem algum, salvo um que certos batéis estavam em Ribatejo com trigo, e foram descobertos por um homem natural de Almada, e tomados por os Castelãos, e ele preso e arrastado e decepado e enforcado. E posto que tal trigo alguma ajuda fizesse, era tão pouco, e tão raramente, que houveram mester de multiplicar como fez Nosso Senhor Jesus Cristo aos pães, com que fartou cinco mil homens. E isto fartou assim a cidade apertadamente, que as públicas esmolas começavam de falecer, e nenhuma geração de pobres achava quem lhe desse pão, de guisa que a perda comum vencendo de todo a piedade, e vendo a grande míngua dos mantimentos, estabeleceram deitar fora as gentes minguadas, e não pertencentes para a defesa. E isto foi feito duas ou três vezes, até lançar fora (das muralhas) as mancebas mundanárias (prostitutas) e judeus, e outros semelhantes, dizendo que, pois tais pessoas não eram de pelejar, que não gastassem mantimentos aos defensores, mas isto não aproveitava cousa que muito prestasse. Os Castelãos à primeira aprazia-lhe com eles, e davam-lhe de comer (a estes expulsos) e acolhimento, e depois vendo que isto era com fome por gastar mais a cidade, fez El-Rei de Castela uma ordenança, que nenhum de dentro fosse recebido em seu arraial, mas que todos fossem lançados fora, e que se ir se não quisessem, que os açoitassem, e fizessem tomar pera a cidade, e isto lhe era tão grave de fazer, tornarem por força pera tal lugar, onde chorando não esperavam serem recebidos. E tais aí havia que de seu grado se iam da cidade, e se iam pera o arraial, querendo de todo ante ser cativos, que assim perecendo morrerem de fome, como não lançariam fora gente minguada, e sem proveito, que o Mestre (de Avis) mandou saber em certo pela cidade que pão havia por todo em ela, assim por covas, como per outra maneira, e achavam que era tão pouco, que bem haviam mester sobre ele conselho. Na cidade não havia trigo para vender, e se o havia era mui pouco, e tão caro que as pobres gentes não podiam chegar a ele, que valia cada alqueire 4 libras, e o alqueire do melhor 40 soldos, e a canada de vinho 3 e 4 libras, e padeciam mui apertadamente, e dia havia ali, que ainda que dessem por um pão uma dobra, o não achavam à venda, e começaram a comer pão de bagaço de azeitona, e dos queijos das malvas e raízes de ervas, e outras desacostumadas cousas pouco amigas da natureza. E tais aí haviam, que se mantinham em alféloas. No lugar onde costumavam a vender o trigo, andavam homens e moços esgravatando a terra, e se achavam algum grão de trigo metiam-no na boca, sem tendo outro mantimento. Outros se fartavam de ervas e bebiam tanta água, que achavam homens e cachopos jazer mortos inchados nas praças, e em outros lugares. Das carnes isso mesmo havia em ela grande míngua, e se alguns criavam porcos mantinham-se neles e assim pequena posta de porco valia 5 libras e 6, que era uma dobra Castelhana, e galinha 40 soldos, e a dúzia de ovos 12 soldos. E se almocreves (mercadores ambulantes) traziam alguns bois, valia cada um 70 libras, que eram 14 dobras cruzadas, valendo então a dobra 5 e 6 libras, e a cabeça e as tripas uma dobra, assim que os pobres por míngua de dinheiro não comiam carne, e viviam mal, e comiam carnes das bestas (cavalos), e não somente os pobres e minguados, mas grandes pessoas da cidade lazerando, não sabiam que fazer, e os gestos mudados com fome bem mostravam seus encobertos padecimentos. Andavam os moços de 3 e 4 anos pedindo pão pela cidade, por amor de Deus, como lhes mandavam suas madres, e muitos não tinham outras cousas que lhe dar senão lágrimas, que era triste cousa de ver, e se lhe davam tamanho pão como uma noz, haviam-no por grande bem, e desfaleciam-lhe leite àqueles que tinham crianças a seus peitos, por míngua de mantimentos, e vendo lazerar seus filhos e filhas, que acorrer não podiam, choravam sobre eles amiúde a morte, antes que a morte os privasse da vida. Muitos esguardavam as preces alheiras, com chorosos olhos, por cumprir o que a piedade manda e não tendo de que lhe acorrer, caíam em dobra de tristeza. Toda a cidade era dada a nojo, cheia de mesquinhas querelas, sem nenhum prazer que houvessem: uns com grande míngua do que padeciam, outros havendo dó das tribuladas; e isto não sem razão, que se é triste o coração cuidoso nas cousas contrárias que lhe avir podem, vede que fariam aqueles que as tão continuadamente presente tinham. Mas com tudo isto, quando repicavam, nenhum não mostrava que era faminto, mas farto, e rico contra seus inimigos, e esforçavam-se uns aconselhar e dar remédio a seu grande nojo, mas não prestava conforto de palavras nem podia tal dor ser amansada com nenhumas doces razões. E assim como é natural cousa a mão ir amiúde onde seja dor, assim uns homens falando com os outros, não podia de todo despartir, senão em a míngua, que cada um padecia. Oh! Quantas vezes encomendavam nas missas e pregações que rogassem a Deus devotamente por o estado da cidade, e ficando de joelhos, beijando a terra, bradando a Deus que lhes acorresse, e sua preces não eram cumpridas. Uns choravam entre si, mal dizendo seus dias, queixando-se por quanto viviam, como se dissessem com o Profeta: Ora viesse a morte antes do tempo, e a terra cobrisse nossas faces, por não vermos tantos males. Assim que rogavam à morte, que os levasse, dizendo que melhor fôra morrer, que lhes serem cada dia renovados padecimentos […] Os padres e as madres viam estalar de fome os filhos que muito amavam, rompiam as faces e peitos sobre eles, não tendo com que lhes acorrer senão pranto, espargimento de lágrimas, e sobre isto medo daquela vingança, que entendiam que El-Rei de Castela deles havia de tomar (…)”.

 – Crónica de D. João I, cap. CXLVIII