Arquitecta, mãe, avó, mas também, e talvez primeiramente, notável política portuguesa, com uma carreira de cinco décadas, Helena Roseta é aqui descrita, com alguma ousadia figurativa, como a pessoa que menos percebe de habitação em Portugal — ou, talvez melhor dito, como uma excelente representante do que é não perceber nada de habitação em Portugal. Vem esta consideração a propósito da sua participação num podcast recente, onde, no decurso da conversa/entrevista, se percebe a miríade de vícios, mal-entendidos, falácias, e, principalmente, o buraco negro gigante de informações parcelares, erros de facto e de juízo, e redondas mentiras, a que as pessoas fundamentalmente ideológicas se entregam.
Convém lembrar o papel próximo que Roseta teve, nas últimas décadas, nas questões de habitação — sendo desde já fundamental sublinhar que a situação há cinco décadas, pré 1974, era muitíssimo diferente e muito mais deficiente em termos de oferta. Roseta colaborou na redacção dos artigos constitucionais que dizem respeito a essa matéria, e teve, desde então, quer no parlamento, inicialmente ao serviço do PSD e mais tarde, e muito mais prolongadamente, do PS, quer na câmara municipal de Lisboa, responsabilidades e pelouros ligadas a essa área. Temos então aqui um excelente exemplo de como uma pessoa fundamentalmente ideológica pode passar a vida toda a tratar de um assunto sem nunca abordar com pluralidade e com realismo o mesmo, dado que a ideologia, essa patologia do homem moderno pós século XIX, deixa na sua visão alguns ângulos mortos que o impedem de ver toda a matéria na sua globalidade e todas as relações entre os seus elementos.
Certamente existirão outros exemplos do enviesamento ideológico de Roseta na visão da problemática, ao longo de cinco décadas de actividade, em muitas entrevistas, artigos, intervenções públicas, bibliografia, tudo o mais. Este podcast é apenas mais um. Nele notamos, em primeiro lugar, a conversa típica dos idealistas — que, curiosamente, numa situação paradoxal, é o nome de um portal de imobiliário de mercado livre — e também de uma certa geração mais viajada e cosmopolita da década de 60 do passado século que, ao verem diferenças avassaladoras entre estado de desenvolvimento de Portugal e o estrangeiro, nomeadamente a nível de condições de habitação nas periferias das grandes cidades — Maria Filomena Mónica e Roseta enquadram-se nesta categoria — ficam muito chocadas, acham que aquilo é muito diferente da vida burguesa que levam, ficam cheias de complexo de culpa e vai daí resolvem construir toda uma identidade política progressista, com intuito de “mudar o mundo“, baseada não em qualquer de conhecimento sistemático sobre as áreas que os preocupam mas meramente advinda apenas de impressões avulsas, muito à semelhança do diagnóstico que certas religiões, em particular a católica, fazem quanto à pobreza: vêem uns pobres, não sabe como nem porquê, nem de onde vieram nem para onde vão, acham que isso está tudo muito mal e então decidem que se deve acabar com a pobreza e que um rico não pode passar por entre a agulha de um camelo ou lá como é que se diz.
Roseta chega então ao patamar de estudo da habitação com esse espírito e, como a tantos idealistas desse tempo, calha-lhes uma revolução no colo: em Abril de 1974, um golpe de estado deita abaixo o interior regime e deixa nas mãos destes meninos e meninas de bem, elites do governo sombra em Portugal, maioritariamente lisboetas, burgueses e e progressistas, além de ignorantes na maior parte das matérias sobre as quais se debruçam, a tarefa de, veja-se só: escrever uma Constituição! Inscrevem nesse documento então todo o tipo de propósitos bem intencionados mas sem qualquer estrutura filosófica, política e conceptual minimamente adulta e passível de ser levada a sério a longo prazo. Inscrevem direitos sem fim, dizem que o estado tem de os proporcionar, preferencialmente de forma direta, para que eles próprios, já convertido em responsáveis políticos e com as mãos bem firmes nas engrenagens do poder — facilitados aliás pelas proibições tanto da Constituição como do Movimento das Forças Armadas de formação de forças políticas de campo de extremo oposto — e aproveitando uma vaga já tardiamente chegada a Portugal de ciclo político de Estatização da economia, possam ser, dizia-se, eles próprios os reconhecidos como salvadores da pátria e das pessoas, únicos, directos e miraculosos solucionadores dos seus terrenos problemas.
Roseta passa assim várias décadas nessa área espalhando generalidades sem qualquer tentativa de sistematização séria, além de breves lampejos, ao mesmo tempo que se dedica, corretamente, a resolver micro problemas — com o dinheiro público, claro está, não com o seu próprio — que qualquer outra pessoa minimamente competente seria capaz de resolver. Ela assim como se constitui uma “ideóloga da habitação“, como muitas outras pessoas ideólogas existem de outras áreas, em Portugal, e que funcionam da seguinte maneira: evoca-se um princípio vago de injustiça universal, em que cabe ao Salvador, seja este a Santa mão da igreja ou o sábio responsável político, corrigir, e fica toda a gente contente: o povo, porque nada sabe do assunto nem passa a saber, e o responsável, porque sem saber do assunto mas meramente com a conjugação de um ideal atrativo que leve a meter as mãos na engrenagem do poder consegue papaguear a sua douta e santa intenção ao mesmo tempo que resolve os problemas que qualquer outra pessoa resolveria conquanto os cordões à bolsa fossem abertos para esse sentido.
Os enunciados de Roseta, na atualidade, sobre a questão, quatro ou cinco décadas passadas desde o seu papel mais relevante nessa área, contém assim muitas das características que “especialistas políticos“ no Portugal pós revolucionário têm: (1) enunciados de princípios seguidos de breves correcções que quase inteiramente os modificam, (2) evocações da experiência pessoal em formato de panorâmicas de décadas passadas onde tudo estava atrasado mas sem dar a mínima perspetiva das razões políticas sociais e económicas para isso ser assim e (3) descrições de sua prova própria experiência e habilidade para, ao leme do poder político, resolver pequenos problemas contornando genialmente a burocracia que eles próprios, os políticos, também se esforçam para criar. São estes os grandes “especialistas“ nas áreas dos “direitos“, gente sem qualquer sistematização credível nem imparcial dos problemas que abordam, capazes de enunciarem dois ou três pontos fundamentais das áreas e esquivarem-se em absoluto a referência de outros, muito aliás a semelhança de muitos governantes do antigo regime.
O dogmatismo e as palas de burro aqui imperam. Vejamos exemplos em concreto: refere, por exemplo, que a habitação não pode estar só sujeita ao mercado, sem explicar exatamente e com que critérios em absoluto objetivos que papel é que cabe ao mercado e/ou ao estado na constituição da mesma. Diz que existem ideologias políticas que delegam a auto regulação do mercado quando ninguém advoga propriamente nesses termos tal coisa mas sim que a regulação governamental não deve interferir com as possibilidades de liberdade de procura e oferta que as trocas livres entre pessoas fornecem. Descreve o famoso problema das barracas que se estendeu desde a passar da década de 60 até à de 90, concentradas nas periferias das grandes cidades, não referindo que advinha maioritariamente de uma industrialização e de des-ruralização tardia do contexto português, não tendo isso propriamente grande coisa a ver com um problema de habitação por si só. Refere a questão do arrendamento passando por cima do problema monumental e de princípio e das rendas antigas, que vem desde a primeira república — problema esse concentrado maioritariamente nos grandes centros urbanos. Tem a lata suprema de, como é de forma falaciosa comum entre certos ideólogos da habitação, dizer que o mercado de habitação não é como os outros porque os solos são limitados — como se em cada solo não fosse possível a construção em altura, solucionando muitos dos problemas da procura que hoje se verifica em grandes cidades e de que, por razões misteriosas, ninguém fala. Por último, naquele que é um dos exercícios de demagogia mais graves deste tipo de pessoas, refere o número de casas desabitadas em Portugal como global e não como local, referindo-se portanto ao total do território, que inclui segundas habitações e esquivando-se por completo a perceber se existe ou não existe falta de oferta em zonas específicas como as das grandes cidades. No caminho, aproveita para enunciar alguns princípios completamente lunáticos, como aqueles que põem em causa o direito de uma pessoa possuir uma habitação ou uma construção que sirva para o que ela bem entende, nomeadamente para estar vazia, se assim for o caso. Essa falácia parte do monumental malentendido a que por vezes chamo a metafísica da habitação e que já abordei noutra peça: achar que as casas são um bem limitado que cai do céu como um mana divino e que só resta ao pobre do ser humano, nomeadamente o benévolo e sábio político, distribuir estes casos recurso pelas alminhas. Ora nada está mais longe da verdade. Nem com os solos que, como já devem ter reparado, estão longe de estar plenamente ocupados por habitações — nem com as habitações em si — que, como já devem ter reparado, são construídas por mãos humanas, não se tratando de grutas, vales ou outras construções naturais. Tais bens não são “finitos”: são produzidos por mão humanas e têm o número e a qualidade que a razão humana bem entender.
Tudo isto remete, mais uma vez, para o universo metafísico em que muitos políticos “do abril” mas não só se movem: princípios em geral importados, mal formulados, mal adaptados e mal entendidos, que só se tornam operantes conforme exista dinheiro para gastar e que acabam por resolver talvez menos de um terço daquilo que poderiam resolver se não se formassem nesta fornalha de má ideologia, má política, e má filosofia. Nesse sentido, um político chato, desapaixonado, tecnocrático e funcional é, ao pé destas figuras de grandes alentos mas pouca substância, uma pessoa de maior confiança e uma coisa de grande valor.