O “Anti-Colonialismo” como Forma de Eurocentrismo Invertido e de Supremacia Ocidental

Texto de Ricardo Fortunato. Revisão de Manuel Dias Dinis. Imagem: a section of a Chinese Eastern Han Dynasty (25–220 AD) fresco of 9 chariots, 50 horses, and over 70 men, from a tomb in Luoyang, China, which was once the capital of the Eastern Han.

Desde já permitam que seja enunciado o argumento fundamental deste texto, que se resume ao seguinte: a reação cultural muito minoritária contra o monumento, tanto lisboeta como nacional, do Padrão dos Descobrimentos, símbolo de uma determinada expansão militar e cultural do Reino de Portugal no início da idade moderna, é um fenómeno muitíssimo recente (não tem mais de cinco ou de dez anos de atenção mediática e de relevância no discurso público) e é um fenómeno que se insere em duas tradições, a primeira delas de categoria de fancaria e a segunda, mais antiga e complexa, não tanto: (1) um exercício de eurocentrismo invertido que pretende que os acontecimentos da história europeia sejam revistos à luz de uma lente que os categorize como excecionais nos cânones da história da humanidade, e (2) representa, a nosso ver, um complexo exercício freudiano de expiação de culpa judaico-cristã e de autoflagelação cultural que mais facilmente pode caber no panteão da cultura sadomasoquista do que propriamente em qualquer conjunto historiográfico sério. Vejamos como.

Battle between Mongols & Chinese (1211). Jami’ al-tawarikhRashid al-Din.

Em primeiro lugar, convém explicar que todos os povos são construídos e constituídos por fenómenos frequentemente enunciados, de forma errónea, como de uma matéria substancial exclusiva de alguns: os fenómenos do “imperalismo” e do “colonialismo”. Estes nomes, que correspondem a conceitos universais que fazem parte de todos os povos, designam processos presentes em toda a história das culturas e das civilizações, processos de ocupações culturais e militares que sempre existiram e sempre existirão — hoje, preferencialmente, através das instituições civilizadas de mediação internacional, mais culturais do que militares — e que compõem em absoluto, sem qualquer excepção, todos os povos e todas as culturas, inclusive a nossa própria.

Isto inclui não apenas as potências locais, regionais ou mundiais que transpuseram barreiras marítimas como oceanos ou mares para ocuparem ou se misturarem etnográfica e culturalmente com outros povos, mas também, e principalmente, aquelas que efectivaram domínios territoriais significativos, como nos exemplos mais coesos e duradouros daquilo a que chamamos “a China” ou “a Índia”. São impérios que se estabeleceram através de um domínio étnico e cultural de um determinado povo e cultura sobre um vasto território, ocupando e subsumindo outros povos e culturas aí existentes, ora os exterminando militar e culturalmente, ora os integrando — e ainda hoje, para informação de alguns analfabetos funcionais dos terrenos da antropologia e da história, são territórios com uma maioria étnica dominante e várias minorias étnicas toleradas. Por acaso alguém acha que a hegemonia cultural e territorial da China ou da Índia na sua forma actual foi criada através de pacíficos referendos locais?

Mas não precisamos de recorrer apenas a exemplos de grandes impérios culturais e militares que hegemonicamente tomaram conta de um vasto território. Qualquer cultura funciona através dos mesmos processos. Se ao pensarmos na Índia e na China, a grandeza de escala facilita vermos nitidamente o fenómeno em acção, mas quando pensamos nos Maori, de África, ou nos Iroquois, da América pré-colombiana, o processo é exactamente o mesmo. Em tempos mais bárbaros, de que hoje já estamos felizmente um pouco distantes, toda e qualquer hegemonia de um povo sobre um território era feita através destes fenómenos, e serão absolutamente minoritários ou inexistentes exemplos de instalações de culturas em unidades territoriais que não tenham passado por processos de ocupação cultural e militar simplesmente pela razão de a natureza humana ter como implícitos esses comportamentos — talvez apenas algumas comunidades selvagens e isoladas ou alguns agrupamentos monásticos escapem à avassaladora regra.

Sendo assim, a expansão ultramarina portuguesa não representa nenhum fenómeno de excepção a esse facto constante da história da humanidade. E se toda a história de todas as culturas, povos e civilizações é feita de opressão e escravatura, de expansão cultural e militar, de domínio imperialista e “colonialismo“, pretende-se então, com uma visão que atribua à cultura europeia um estatuto de excepção, a criação de um quadro exclusivista e excepcionalista que pretende atribuir às potências europeias quinhentistas algum papel absolutamente único nessa matéria. Ou seja, não existem inocentes na história das culturas à face da terra. Uma perceção que pretenda atribuir à expansão ultramarina Ibérica uma diferença não de grau mas de espécie em relação a todos estes fenómenos anteriores é muito discutível, sendo que a única coisa que parece constituir diferença significativa é a questão da escala, e não é certo que isso a permita classificar como um fenómeno substancialmente diferente. O assunto é, porém, absolutamente discutível. O que não é discutível é ingenuidade de se achar que um monumento que celebre a identidade cultural chinesa não implica também os mortos e feridos que foram necessários para construir essa hegemonia — o mesmo para a Índia, para os Maori ou para os Iroquois e o mesmo, por último e por fim, para o Padrão dos Descobrimentos.

Painting of the Six Kings, Unknown Umayyad 8th century painter, c. 710–750, Jordan.

Em segundo lugar, se precisamente esse monumento conhecido como Padrão dos Descobrimentos funciona como uma homenagem a um determinado período de expansão militar e cultural de uma potência europeia, e se todas as culturas, povos e civilizações do mundo são resultado de processos que envolvem ocupações culturais e militares (ou seja, “colonialismo“ e “imperialismo”), o Padrão em nada difere não só de qualquer outro conjunto arquitectónico que celebre não apenas um período específico da história de uma cultura, mas mesmo de um que celebre simplesmente a existência de uma cultura. Qualquer país, povo ou cultura do mundo tem monumentos dessa espécie. Se a constituição de qualquer domínio hegemónico de um território por parte de uma unidade cultural a que podemos chamar um povo envolve esses fenómenos, então qualquer monumento de celebração nacional ou cultural à índia, à China, aos Iroquois ou aos Maori representa exactamente os mesmos processos de opressão que acusam o Padrão de representar. Não parece razoável, aliás, parece infantil, que se pretendesse um mero exercício autoflagelatório de ter vergonha de identidades culturais por causa de fenómenos que são universais.

Outros sub-argumentos, que diferem em geral não em substância mas em escala, pretendem alegar que as expansões militares e culturais europeias quinhentistas foram particularmente sanguinárias, e que o regime específico do Estado Novo escolheu ignorar isso devido também à sua própria alegada brutalidade, mas tal ignora que o fenómeno da crueldade para com o próximo, seja indivíduo ou povo, está atestado na história possível de todas as culturas e nações, e que é possível que qualquer regime, ao celebrar determinados períodos, opte não por ignorar o custo de sangue envolto nestes fenómenos macro-culturais mas sim aceitá-los e seguir em frente de forma adulta. Estão portanto erradas as ideias de que (1) a diferença de violência dos processos expansionistas ibéricos e europeus face a outros seja de espécie e não de grau (embora isto possa ser discutido, seguramente), que (2) o regime do Estado Novo foi, mais do que autoritário, “brutal“ e “sanguinário”, pois tal descrição tem que ser colocada em comparação com outros do mesmo género e seguramente não existiu nem genocídio nem operação militar e policial generalizada sobre a maioria da população nem nada que se pareça e que (3) uma descrição ingénua, vaga e feita de lugares comuns que não correspondem à realidade da aventura ultramarina portuguesa seja aceitável ao nível de um exercício histórico sério. O nível de “Walt Disney” destas leitura antropológicas e históricas dos povos, sublinhadas com uma versão de racismo invertido de que já falaremos, implicaria que, por exemplo, os chineses ou os indianos seriam uns santos cuja construção da nação não envolveria opressão nem conquista militar de espécie alguma, enquanto que os europeus seriam os selvagens de serviço. Este paradigma é um excelente exemplo da ignorância mitomaníaca que domina certos ethos intelectuais hoje e que até chega às universidades. 

Nenhuma “aula de história“ inviabilizaria a legitimidade da existência ou o estatuto moral deste monumento. A única aula de história séria que deixamos aqui para todos é aquela que coloca a pergunta: existe algum povo à face da terra que não tenha feito ocupação cultural e militar de outros? Aliás, a ideia hoje popularizada sabe-se lá por quem de que o “colonialismo“ de vários séculos foi um tempo de “guerra“ é absolutamente tendenciosa e fantasista. Também a acusação de que o expansionismo cultural e militar era contra a religião professada não cola, pois o cristianismo católico não é construído apenas sobre a palavra de Cristo mas também sobre todas as interpretações da mesma, e isso não resulta necessariamente em contradição com a evangelização de povos distantes e bárbaros. Assim, é absolutamente errado reduzir a expansão ultramarina ibérica a um defile de sadismos escatológicos, quando a mesma se integra, de forma perfeitamente linear, na história das ocupações culturais e militares que sempre existiram. Portanto a ideia de que o significado do Padrão dos Descobrimentos é maioritariamente uma coisa triste, censurável, moralmente perversa, é uma ideia pessoal de alguns, que têm todo direito a ter, mas não é ideia da maioria das pessoas, não é uma ideia lógica e objetiva, e seguramente deve ter um lugar nas universidades, onde qualquer ideia tem o direito de entrar, mas um lugar onde seja colocada completamente em cheque pelos factos e pela lógica.

Timur defeats the Sultan of Delhi, Nasir-u Din Mehmud, in the winter of 1397–1398

Em terceiro lugar, em última instância qualquer monumento à existência de qualquer povo culturalmente homogéneo representa também violência, o que leva à questão de se as identidades coletivas devem ser moralmente em absoluto abolidas. O que parece pressupor a crítica feita às ideologias de evangelização e de superioridade cultural do ocidente na nossa estrutura mental é o mesmo que se perpetua em qualquer povo e na sua identidade, sendo que esta se constrói, necessariamente, por oposição a outros, e essa oposição frequentemente resulta em guerras culturais e militares. Portanto a resposta parece ser que se alguém se quer livrar das dinâmicas dessa ideologia, se tem de libertar simplesmente da noção de identidade cultural e social coletiva.

Perante a memória histórica e o saber antrpológico de que todos os povos e todas as culturas do mundo são filhos de fenómenos de ocupação cultural e militar que têm frequentemente consequências nocivas juntamente com as positivas, que a China ou a Índia actuais, por exemplo, territórios gigantescos, não foram construídas à base de pacíficos referendos locais, como é óbvio, que os povos ameríndios e sub-saarianos não viviam pacificamente entre si mas sim num registo de guerra tribal quase permanente, e que os grandes impérios, poucos, entre eles existentes foram também construídos através dos mesmos fenómenos de ocupação cultural e militar, somos levados à conclusão mais que provável de que não há nada de excepcional no fenómeno europeu.

É certo que o exercício de inspiração científica no qual se baseia aquilo que hoje entendemos como história reflecte precisamente a capacidade de contar histórias sobre várias perspectivas, mas desde que não contradigam factos, sendo os factos neste caso os seguintes: a história de qualquer povo, cultura ou civilização é também feita de expansões militares e culturais e é absolutamente ingénuo e infantil ter uma excessiva vergonha e sentimento de culpa judaico-cristã em relação a isso. Desse modo, a questão de quem “é dono” da história é uma maneira errada de colocar as coisas; as humanidades e as ciências constroem-se em conversa, não em sentença dogmática. Estamos assim perfeitamente a par das várias correntes na historiografia moderna nesse sentido e estamos também à vontade para dizer o seguinte: qualquer corrente que considere, sob uma batuta de moralismo barato e de autoflagelação cultural neurótica, que o expansionismo cultural e militar ultramarino europeu constitui algum tipo de exceção de história das culturas e dos povos é uma teoria não-histórica, pois não se alicerça nos factos de que dispomos, de que a história das culturas, dos povos e das civilizações sempre foram constituídas em parte por expansionismo culturais e militares, mas é sim uma teoria de gosto político muito duvidoso e que convém interpretar como tal. E que revela, aliás, um notável eurocentrismo, que abordaremos de seguida. 

Wat mural depicting Prince Naresuan on horseback stabbing the Burmese commander in 1586

Em quarto lugar, a ideia de que se trata de algo excepcional só pode estar enraizada nalgum tipo de eurocentrismo invertido. Este hábito contemporâneo de falta de contexto histórico a nível mundial e auto-flagelação cultural parece ser de modo suspeito uma empresa freudiana que nenhuma postura académica séria pode estar disposta a acompanhar. Novamente, vamos a factos: as ditas ocupações sempre existiram e sempre existirão, preferencialmente na modernidade mais à base de conquistas culturais e menos militares; todas as culturas, todos os povos e todas as nações são filhos desses fenómenos e, como muito bem sublinhámos, não há inocentes à face da terra, muito menos os povos sub-saarianos e ameríndios cuja história, a pouca a que temos acesso, reflecte climas de guerra tribal constante e hábitos morais nesse nível e cívicos em geral que certamente não agradadariam ao ocidental comum; a escravatura sempre existiu e ainda existe, embora seja concebível que possa deixar de existir dentro dos próprios cinquenta ou cem anos; e as expansões ultramarinas europeias do período, assim como o tráfego de escravos, não são nenhuma excepção nessa história. Se alguém acha que são, é possível que sejam, sem o saber, adeptos de um qualquer tipo de “excepcionalismo europeu” que não acompanhamos.

Assim, esta parece ser uma variante curiosa das ideologias do “excepcionalismo” nacionalista, no caso, português, ou europeu se pensarmos nos casos de outros países, que leva a entender que a expansão ultramarina, por via cultural e militar, é algum tipo de período excepcional na história da humanidade que, supostamente, seria constituída no restante por povos vivendo alegre e pacificamente uns com os outros, trocando oferendas e passando férias, etc. Ora como é óbvio não é nada assim e a tese de que a expansão portuguesa é diferente da fenícia, da romana, da iroquois, da indiana, da chinesa, etc, parece pertencer de facto a um quadro mental de “excepcionalismo” na verdade muito mais eurocêntrico e alicerçado nalgum tipo de superioridade cultural que supostamente seria atribuível ao ocidente, o qual cabe às personalidades que o propõem justificar.

Se não é certo que as consequências materiais e humanas do projecto imperial português possam ser lidas só através da lente pequeno-moralista, também não é certo que devam ser entendidas apenas como empreitada grandiosa sem qualquer tipo de danos daí derivados — mas o monumento é laudatório, de exaltação e não de auto-flagelação cultural muito na moda. De resto, a ideia veiculada por alguns de que o museu anexo ao monumento tem a ganhar com retratos menos laudatórios e mais críticos é inteiramente válida, mas isso não equivale a nenhuma “vergonha colectiva” com o monumento, que tem ultimamente — de há poucos anos para cá — sido veiculada por alguns hiper-sensíveis de modo completamente acéfalo, e daí ter sido derivada a nossa reacção em relação a essas maneiras completamente erradas de ler a história — já para não falar de relacionamento estranhamente masoquista, freudiano e contraditório com a própria cultura que permite a formulação de todas estas reflexões que achamos bem-vindas.

Resumindo: em que medida é que elencar como visões históricas parciais e ignorantes que pretendam atribuir, de forma eurocêntrica e masoquista, aos europeus o exclusivo do expansionismo cultural e militar — o qual seguramente qualquer pessoa sabe reconhecer que não é exclusivo desses, a menos que se seja inteiramente analfabeto — são visões históricas sérias e não propaganda política duvidosa disfarçada? Por outras palavras, como se pode compatibilizar o factos de que todos os povos, culturas e civilizações passaram por esses processos e têm seguramente monumentos de homenagem aos mesmos, e a ideia de excepcionalíssimo europeu que pretende que sejam estes povos os únicos do mundo a ter vergonha judaico-cristã desse passado? 

 Lateral view of the Piedra de Tizoc, Aztec sculpture representing the act of grabbing another’s hair, long been recognized as a symbol of defeat or conquering in Mesoamerica, and as such the stone is interpreted to represent the conquest of other locations by the Mexica.

Em quinto lugar, e por último, é sem dúvida nesses termos adultos que a conversa deve ser tida: naqueles que identificam como nem a violência das expressões culturais e militares deve ser excessivamente celebrada, nem o sentimento de culpa e de censura moral barata deve ser excessivamente enfatizado. É necessário assim postular que a violência faz parte do mundo, da vida, e da história, e que a sua glorificação, para pessoas adultas e mentalmente coesas, não tenha de ser necessariamente uma coisa aterradora nem sequer perigosa; é certo, porém, que para a historiografia minimamente imparcial não é necessária a glorificação, mas também não é necessária a censura nem o julgamento moral negativo sobre a violência. Se formos por critérios de puritanismo moral não existiria uma única estátua erguida a absolutamente nada nem ninguém à face da terra.

É com esse quadro, estamos em crer, que a maior parte das pessoas encara o Padrão dos Descobrimentos: com absoluta normalidade e maturidade.