Uma pequena crónica sobre exílio e renascimento.
Texto de Daniel Inácio
Deixei de contar os dias à quarentena. Não sei quantos passaram já, pelo que as minhas referências temporais se resumem a pequenos acontecimentos que ancoram os dias a uma linha temporal que se me afigura mais ou menos difusa. Esta, por exemplo, será a manhã em que colhi o primeiro morango. No verão passado ofereceram-me dois vasos morangueiros de barro; em Janeiro, conduzi até um mercado tradicional e procurei entre as bancas plenas de vegetais e verduras a que tivesse as plântulas que me parecessem mais naturais e viçosas, o que resultou em perguntar à vendedora de uma das bancas mais pequenas e livre de fregueses se os seus morangueiros eram livres de produtos químicos. Assegurou-me que sim, que o filho não usava químicos nas sementeiras, e disse-me que aqueles eram morangueiros de Santo André, uma variedade de boa qualidade, com produção de morangos que eram uma maravilha. Trouxe para casa dezasseis pequenos morangueiros – talvez que fosse um número elevado, mas tanto melhor, que poderia partilhar com amigos e família, e cabiam todos nos meus vasos. O tempo passou, fui regando e mondando os morangueiros, acompanhando o seu crescimento e floração. E eis que assim, nesta manhã de quarentena, colhi o primeiro morango, que se adiantou a todos os outros. Na verdade, este é o segundo morango; o primeiro terá sido há uma semana atrás; mas distraído no acto de contemplar todos os dias o seu amadurecimento enquanto alguém que vê um morango amadurecer pela primeira vez, deixei passar o momento de o colher, e acabei por constatar que era tarde de mais para alguma vez o chegar a fazer. Isto é, de resto, o que acontece com muitas coisas na vida. Ao que, para todos os efeitos, este é o primeiro morango que colhi este ano, ou sequer alguma vez.
Que alegria! Trouxe-o para casa, coloquei-o sob um pratinho da balança, o vermelho vivo crivado de pequenas sementes pretas com uma pequena coroa verde a brilhar sobre o dourado do latão ariado. Decidi preparar um pequeno almoço como deve ser, para celebrar o primeiro morango. Preparei café fresco, que compro a granel na mercearia local. De duas laranjas que o meu avô me ofereceu, espremi o sumo. Torrei duas fatias de pão, da padaria local. Estrelei dois ovos, que a minha avó me deu, das suas galinhas em produção biológica. E ao morango, coloquei-o tal o colhi sobre uma fatia de pão de ló que confeccionei no dia anterior, seguindo uma receita da minha avó, e que também é a minha primeira entrada nas artes pasteleiras. Tudo disposto na mesa, quão bela, pensei na vendedora dos morangueiros, e no filho, que os cresceu de forma natural; pensei na senhora da mercearia local a pesar-me o café; pensei no meu avô, a cuidar das laranjeiras ao longo de um ano; nos padeiros, a amassar e a cozer o pão de noite para o deixar aqui à porta pela manhã; pensei na minha avó, a tratar do galinheiro, a ditar-me a receita pelo telefone, a enviar-me uma velha forma de alumínio em forma de coração para que pudesse cozer o bolo. A cor laranja das gemas dos ovos e do sumo das laranjas avivou-se sobre a mesa. O pão ganhou textura, o aroma do café intensificou-se, e o morango era o símbolo último da vida e da alegria. Quanta dedicação e trabalho colectivo para que eu pudesse preparar este pequeno almoço, ao fim e ao cabo um simples pequeno almoço, visível apenas para mim. Mas depois pensei que o café vem de longe, que alguém o colheu e torrou, que terá feito uma longa viagem até chegar aqui; que os padeiros fermentaram a farinha que alguém moeu a partir dos cereais que possivelmente outro alguém cresceu. E o mesmo para o bolo, quantos ingredientes. Tantas pessoas à minha mesa. A Natureza à minha mesa. Tantos gestos espalhados de forma precisa no tempo, desde a colheita do primeiro morango, a passar pelo dia em que os vasos me foram oferecidos, a colheita do café, talvez a sementeira do centeio? Um rol de gestos repetidos na história da humanidade à minha mesa, e um pequeno almoço que em comparação durará um instante. E então surge um alerta, o carpe diem do instante a debater-se com o princípio de uma deambulação filosófica que me parece grande de mais para que a possa compreender no momento. Olho a mesa. Por ora, o pequeno almoço; depois, a complicada teia de gestos simples espalhados no espaço e no tempo e de que vislumbro apenas os fios que me estão próximos.