Testemunho de Guilherme D’Oliveira Martins
Com o fim da guerra, houve quem pensasse que os aliados iriam pressionar os países ibéricos no sentido da democracia e do pluralismo. No entanto, as feridas abertas pela guerra civil espanhola e o desenvolvimento da guerra fria suscitaram entre os membros da Aliança Atlântica receios e cautelas especiais, que se traduziram na manutenção dos regimes peninsulares. A «neutralidade colaborante» portuguesa do final do conflito mundial, apesar de todas as ambiguidades, serviu para legitimar «de facto» a continuidade de Salazar. As esperanças alimentadas em 1945 foram diversificadas – desde os republicanos da oposição tradicional moderada até ao Partido Comunista, passando pela pequena oposição monárquica, que julgou ver então uma possibilidade de mudança de regime (contando com a antiga ambiguidade do Presidente do Conselho). No entanto, depressa se percebeu que tudo ficaria na mesma, apesar de equívocos terminológicos, sem consequências práticas, que levariam Salazar a falar de «democracia orgânica» e de «eleições livres como na livre Inglaterra».
O certo é que, entre 1945 e 1958, sente-se uma evolução no sentido de integrar progressivamente os católicos na transição centrada numa abertura gradual mas audaciosa do sistema constitucional. A oposição republicana alimentava no seu seio contradições significativas, que o tempo agravaria, em especial no domínio da política ultramarina. Afinal, a República fora criada na sequência do Ultimatum inglês e a memória desse ultraje estava ainda presente na abordagem do tema colonial pela velha guarda do reviralho. O Partido Comunista beneficiava da conjuntura internacional da guerra fria e tendia (até pelo reconhecimento implícito da situação) a afirmar-se como a força mais significativa da oposição. Note-se que a posição da Igreja Católica relativamente à autodeterminação dos povos colonizados evoluiria muito (na linha do que Mounier dissera em «L’Éveil de l’Afrique Noire»), até como condição de consolidar a sua posição do terceiro mundo. Em 1958, a transformação política mais importante que se registou foi o início do canto do cisne da «frente nacional» que sustentava o Estado Novo, em que as Forças Armadas e a Igreja desempenhavam um papel essencial. E o certo é que esses apoios irão ser postos em causa definitivamente. E se usamos a palavra «definitivamente», tal tem de ser interpretado à luz de uma tendência gradual, com momentos de evolução lenta, alternando com outros mais rápidos (como na eclosão da guerra colonial em 1961 ou nas crises estudantis).
O abalo da “frente nacional”
Se falamos de 1958, referimo-nos à candidatura à Presidência da República do General Humberto Delgado e ao memorando enviado pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, a Oliveira Salazar – que irão contribuir para que a «frente nacional» seja fortemente abalada. Henrique Galvão e António Sérgio, duas personalidades provindas de horizontes antagónicos (um, do grupo de militares que implantou a ditadura militar em 28 de Maio de 1926, braço direito de Salazar na Emissora Nacional; e o outro, prestigiado intelectual da renovação republicana, referência da «Seara Nova»), que se tinham encontrado na oposição ao Estado Novo, convergiram na defesa de que este apenas poderia ser mortalmente atingido se os seus apoios fundamentais fossem abalados, a partir de dentro. Daí a candidatura de Humberto Delgado, que o PCP não apoiou num primeiro momento, e que tomaria uma dinâmica imparável, o que obrigaria os comunistas e mudar de atitude, desistindo do seu candidato Arlindo Vicente. No caso da Igreja Católica, a atitude do regime face a D. António Ferreira Gomes, impedindo-o de regressar ao Porto (apesar de manter a dignidade episcopal), torná-lo-á uma vítima e um dos símbolos do «aggiornamento» do Concílio Vaticano II, no que este visava superar o eurocentrismo e assumir a compreensão dos «sinais dos tempos» (que a encíclica «Pacem in Terris» e a constituição «Gaudium et Spes» enfatizam).
António Alçada Baptista representa na história cultural portuguesa um singular exemplo que, ora tem sido reduzido injustamente a uma suposta ambição política, ora tem sido alvo de manifesta desatenção relativamente a um real papel de intérprete heterodoxo de uma cultura condicionada pela oscilação entre os mitos de todo o mundo e ninguém. Nada mais enganador do que desvalorizar o seu lugar crucial na preparação da democracia. Vindo de um meio conservador, com fortes raízes na sociedade beirã, sendo destinado a um percurso tradicional de uma advocacia de negócios e influência, depois de uma formação nos jesuítas, António Alçada recusou esse destino, apesar de ter começado por sentir um sucesso possível nos primeiros passos que começou a trilhar. Apesar de todas as resistências do Estado Novo, o certo é que os ventos da modernização fizeram-se sentir. As mentalidades, as influências, os debates, os autores, as tendências artísticas, tudo vai mudar no final dos anos quarenta e cinquenta. Há tensões contraditórias que a geração de Alçada Baptista vai interpretar. O «reviralho», a partir de 1945, sente uma evidente atração por quem tinha sido a grande aliada dos Estados Unidos para pôr fim ao domínio do «eixo», a União Soviética. Os temas sociais e o chamado neo-realismo vão ocupar um lugar proeminente. Nos Estados Unidos, o «macartismo» e a caça às bruxas criarão um clima intolerável, o que servirá para fortalecer, num primeiro momento, as simpatias intelectuais relativamente às suas vítimas.
Para um católico com preocupações críticas, os motivos da separação prendiam-se com a confusão de uma cruzada política que acenava com os fantasmas do anticlericalismo que tinham levado, em parte, ao fim da Primeira República. Salazar sobrevivera em 1945 contra as expectativas de alguns, uma vez que a «guerra-fria» evitara a liberalização a sério na Península Ibérica. Mas havia mudanças, e António Alçada cedo começou a compreendê-las – até porque os motivos de desconfiança iam-se acumulando mesmo nos meios conservadores. Os monárquicos perceberam que a hipótese de uma restauração, acenada antes numa base equívoca, tornara-se uma ilusão irrealizável no âmbito da «situação», até por falta de vontade de Salazar e dos seus putativos delfins. O caso do Centro Nacional de Cultura, fundado por jovens monárquicos em 1945, é ilustrativo – evoluindo no sentido de uma atitude democrática e pluralista.
Denunciar a “desordem estabelecida”
A evolução no sentido da oposição ao regime correspondeu à soma de fatores complexos e contraditórios – que levaram muitos monárquicos e católicos a aproximar-se dos meios oposicionistas, numa perspetiva moderada ou até radical, o que levaria ao alargamento do campo de ação cultural dos críticos do regime. Há, assim, um forte contraste com o ambiente cultivado por António Ferro nos alvores do regime. Depois de 1945, deixa de haver uma relativa cumplicidade com meios culturais e artísticos… Entretanto, a Igreja Católica não podia deixar de estar atenta ao Terceiro Mundo e à autodeterminação dos povos, ao lado da crescente consciência dos problemas sociais e das desigualdades com repercussões pastorais e teológicas. Haveria que denunciar a «desordem estabelecida».
Logo em 1945, houve esperança numa abertura. Alguns poucos católicos apostam na democratização através do MUD. Aí encontramos Francisco Veloso, antigo dirigente do Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, onde militara Oliveira Salazar, além do Padre Joaquim Alves Correia, missionário espiritano, de Sebastião José de Carvalho, monárquico liberal, e de José Vieira da Luz. O Padre Abel Varzim fora afastado do lugar de deputado à Assembleia Nacional no final da legislatura de 1938 a 1942, por impossibilidade de ter eficácia nos seus alertas sociais, tendo depois os membros da Liga Operária Católica (LOC) abandonado os postos diretivos dos sindicatos nacionais. Há ecos de que o Padre A. Varzim teria sondado algumas personalidades católicas para a eventual criação de um Partido Democrata-Cristão. Em 1946, o Padre Joaquim Alves Correia é exilado nos Estados Unidos depois de ter publicado no jornal «República» um artigo sobre a «noite sangrenta» de 1921. Entretanto, a publicação do jornal «O Trabalhador», da Ação Católica Operária, é suspensa no mesmo ano. Na campanha eleitoral de 1949, em que concorre o General Norton de Matos contra o Presidente Carmona, um jovem católico, assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, Orlando de Carvalho, afirma: «A Ditadura porque não é um sistema de governo, mas um interregno na vida política normal (…) não tem de pensar em como renovar-se, em como subsistir, mas apenas em como findar e o mais depressa que puder (…). O único critério que até hoje me pareceu suficiente de renovação é o critério do povo, da consulta popular sincera» («Diário Popular», 24.1.49). Em resultado destas declarações, o jovem vê suspenso o seu contrato de segundo assistente na Faculdade.
Os sinais são vários. Em 1950, o Padre Abel Varzim organiza em Lisboa o I Congresso dos Homens Católicos, a que assiste o Ministro da Justiça, Manuel Cavaleiro de Ferreira; no entanto, este abandonará os trabalhos em virtude das intervenções, tendo havido pressões, por exemplo, relativamente a José Sebastião Silva Dias, para aligeirar os reparos críticos. Em 1951, Manuel Bidarra de Almeida será afastado da direção da Ação Católica, em virtude de uma intervenção contra a «situação» no Congresso Internacional Católico de Lisboa. Em 1953, Adérito Sedas Nunes e Maria de Lourdes Pintasilgo protagonizam o Congresso da JUC em que o movimento conhece uma profundíssima renovação, com consequências no «compromisso social» e na realização de inquéritos sobre a situação dos portugueses. Sente-se a influência do assistente nacional da organização universitária, o Padre Dr. António dos Reis Rodrigues (futuro bispo de Madarsuma). Em 1955, o I Congresso da JOC suscita suspeitas e desconfianças, uma vez que o regime teme que Abel Varzim se prepare para fundar o Partido Democrata-Cristão – por isso, a censura recebe orientações para fazer passar despercebida a iniciativa na imprensa. Em 1956, João Salgueiro é eleito presidente da JUC e é criado o jornal «Encontro». Entretanto, diversos membros da JUC contestam, em Coimbra e Lisboa, o Decreto-Lei 40.900, de 12 de Dezembro, por restringir os direitos das Associações de Estudantes. A denúncia prolongar-se-á, envolvendo o futuro Presidente Geral da JUC, João Bénard da Costa (1957-58) e Carlos Portas, Presidente da Associação de Estudantes de Agronomia e Presidente diocesano da JUC. É o tempo em que o «Encontro» ganha protagonismo crítico – sendo Pedro Tamen chefe de redação e envolvendo Nuno Cardoso Peres (que viria a professar como dominicano, Frei Mateus Peres, O. P.), Cristovam Pavia, Nuno Bragança, Nuno Portas, José Domingos Morais, José Escada e M. S. Lourenço. Este será o grupo que acompanhará Alçada na sua editora.
“Que não desistam de pensar”
Pode dizer-se que, a partir do ano emblemático de 1958, António Alçada Baptista deu, nos meios culturais (demarcando-se do jacobinismo e do coletivismo), com a Livraria Morais e depois com a revista «O Tempo e o Modo», contributo decisivo para o termo da chamada «frente nacional» de Salazar, do mesmo modo que deram, nos meios militares, a candidatura presidencial do General Humberto Delgado, antigo símbolo das Forças Armadas fiéis ao regime, e, na Igreja Católica, o memorando do Bispo do Porto dirigido ao Presidente do Conselho. Estava, no fundo, em causa o que afirmaria na «Peregrinação Interior»: «Peço e insisto com os senhores especialistas de povos e planificadores de impérios que não se deem por contentinhos com o trabalho que estão a fazer e peço a todos os incomodados do mundo que não desistam de pensar como é que isto se pode consertar».
Importa, deste modo, referir o papel desempenhado pela Livraria Moraes. António Alçada Baptista lançou, exatamente em 1958, o projeto renovador da Moraes, que acompanhará as profundas mudanças que se verificavam e anunciavam. Tratou-se de criar um movimento de opinião centrado em leigos católicos (com apoio de alguns clérigos) capaz de seguir e concretizar o programa de Emmanuel Mounier de unir católicos e não católicos no combate contra a «desordem estabelecida», que o mesmo seria dizer, romper com a cumplicidade da Igreja Católica em relação ao regime de Salazar. Assim, ao contrário do que muitas vezes se pretende, como se disse, a ideia fundamental de António Alçada Baptista não tem a ver com a criação de um Partido Democrata-Cristão. Para o desmentir, basta ler-se atentamente os textos publicados nas coleções «O Tempo e o Modo» e «Círculo do Humanismo Cristão». E percebe-se que está em causa algo de muito diferente – o que altera totalmente a ideia de que Alçada Baptista viu derrotado o seu projeto político. O que AAB desejava era encontrar uma convergência de movimentos e opiniões que permitisse uma transição pacífica de contornos abertos e cosmopolitas, segundo a lógica das democracias ocidentais. A ligação ao Congresso para a Liberdade da Cultura (e o forte papel desempenhado por Pierre Emmanuel) é um sinal dessa orientação. Trata-se de tornar ativo, em Portugal, um grupo de intelectuais sem vocação partidária ou até cristã. Do mesmo modo, a ideia, não concretizada de «O Pacto», influenciada pela comunidade de Mounier nos arredores de Paris, também nada tem a ver com um movimento político. É certo que, aquando da fundação de «O Tempo e o Modo», Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio participam. E Mário Soares pretendia que AAB fosse a personalidade aglutinadora de uma corrente política democrata-cristã – no entanto esse entendimento deparava com a posição contrária do próprio António Alçada Baptista e da maioria dos seus companheiros (para quem não deveria haver uma política cristã, mas cristãos livres, sem movimentos confessionais, na política).
Recorde-se o poema de Ruy Belo, que no seu início diz: «Nós os vencidos do catolicismo / que não sabemos já donde a luz mana / haurimos o perdido misticismo / nos acordes dos carmina burana // Nós que perdemos a luta da fé / não é que no mais fundo não creiamos / mas não lutamos já firmes e a pé / nem nada impomos do que duvidamos». Sentimos, com muita nitidez, o ambiente geral do tempo observado. E há um drama evidente, que tem a ver com a claustrofobia sentida numa sociedade que, sem pluralismo, tendia a separar as opções entre o nosso e o contra nós. Aliás, é a mistura entre o ambiente político dos dias finais da autocracia com a crise da Igreja pós-conciliar que torna especialmente dramática a situação portuguesa. Afinal, como afirma o Padre Manuel Antunes, não estamos perante uma questão puramente portuguesa, apesar de ganhar aqui (como em Espanha) contornos especiais em razão dos constrangimentos políticos existentes. Daí que entre os católicos os acontecimentos que a obra refere tenham sido sentidos como ferida aberta, em carne viva – facto bem simbolizado não só na fotografia do Engº Francisco Lino Neto, com a cabeça ensanguentada, depois de ser atingido pela polícia de choque na manifestação de apoio ao General Delgado, mas também nos doloridos poemas de Ruy Belo da fase final. E o poeta dirá, profeticamente: «a história do catolicismo português atual, a fazer um dia, não pode deixar de ser uma história dolorosa». Aliás, a afirmação «não é que no mais fundo não creiamos» revela um carácter de escolha decisiva, que leva o poeta, bem como o Padre José Felicidade Alves, de modo diferente, a uma corajosa demarcação de posições. Nada poderia continuar na mesma. A conciliação confundia-se com traição, e isso era impensável. Afinal, lidas as Escrituras, o escândalo da contradição era enorme e insofismável. «Nesta vida é que nós acreditamos / e no homem que dizem que criaste / se temos o que temos o jogamos / “Meu deus meu deus porque me abandonaste?”». Sente-se a dúvida e a revolta… Como afirma Sérgio Campos Matos: «A modernidade passava também por uma espiritualidade renovada, liberta de dogmas e constrangimentos, aberta aos problemas humanos concretos, ao pulsar da vida, às culturas de protesto que a juventude dos anos 60 ia difundindo numa sociedade bloqueada. Compreende-se que, por essa época, a ‘crise da Igreja’ e até mesmo a ‘crise da civilização’ (P. Manuel Antunes) fizessem parte do léxico dos católicos que ousavam adotar um pensamento crítico». Se João Miguel de Almeida em “A Oposição Católica ao Estado Novo” nos faz uma descrição histórica passo a passo desse tempo, Jorge Revez, em «Os “Vencidos do Catolicismo” – Militâncias e Atitudes Críticas (1958-1974)», analisa o drama, centrado em dois caminhos individuais e na sua inserção na história portuguesa. Daí a interrogação sobre o «vencidismo», mesmo entendendo-se que não há uma geração com coerência intrínseca, nem um projeto marcado.
O “aggiornamento” e o “descomprometimento” da Igreja
É o tempo do «aggiornamento» que levará ao Concílio Vaticano II e que coincidirá com o progressivo «descomprometimento» da Igreja Católica com o Estado Novo. No Concílio intervêm D. António Ferreira Gomes e D. Sebastião Soares de Resende. Em 1959, diversos católicos (como Manuel Serra) participam na tentativa de golpe da Sé. Recordem-se, aliás, o documento de Francisco Lino Neto «Considerações dum Católico sobre o Período Eleitoral» (Junho de 1958), os abaixo-assinados de 1959 e o «manifesto dos 101» (de Outubro de 1965). Trata-se de textos fundamentais sobre a necessidade da democratização, sobre a polícia política e sobre a autodeterminação dos povos de África. No último caso, Nuno Bragança empenhou-se pessoalmente em assegurar que o Cardeal Cerejeira recebesse no Vaticano, onde se encontrava, um pedido para não desautorizar os católicos signatários desse documento que punha o dedo na ferida dos temas do pluralismo e do futuro de África. De facto, o Prelado recebeu o empenho e não pôs em causa diretamente os católicos signatários, o que os deixou satisfeitos, indo António Alçada Baptista ao Aeroporto da Portela para receber o Cardeal em sinal de reconhecimento.
A ida do Papa Paulo VI ao Congresso Eucarístico de Bombaim (1964) gera forte polémica. Em 1965, o fecho da Sociedade Portuguesa de Escritores leva a que o CNC, sob a presidência de Sophia de Mello Breyner, acolha os autores espoliados da sua associação. Nasce entretanto o «Direito à Informação» (com Maria Natália e Nuno Teotónio Pereira, António Jorge Martins e Frei Bento Domingues), e verifica-se que são os cristãos a colocar com maior ênfase a questão colonial e a autodeterminação… «Tenho uma dor chamada Portugal / país defunto talvez unto para nações vivas / Portugal meu país de desistentes / terra mordida por soares dos reis / por antero camilo ou trindade coelho / Suicidou-se nestes homens o país / um país de província Portugal…». Assim se exprime Ruy Belo. É uma reflexão do português e do cristão. E António Alçada sublinha a contradição dramática: «Falou-se então na morte de Deus. Na verdade, era necessário que esse Deus morresse porque estava a tomar o lugar de um outro que se confundia com o mistério da nossa liberdade que é também a consciência de enfrentar um mistério que é a essência do novo Deus que se anunciava»… Jorge Revez procura dar-nos a chave do que, para si, está em causa, unindo os temas ligados: «o vencidismo desses católicos foi, provavelmente, o resultado ou a expressão de um processo de deslocação cuja movimentação principal seria a da secularização, em que, inconformados com a estrutura religiosa de que faziam parte e face às novas dimensões da experiência humana com as quais vinham contactando, optaram pela rutura». Quando Sophia de Mello Breyner Andresen diz na vigília da Paz de 1969 «vemos, ouvimos e lemos não podemos ignorar», é o alerta em nome da liberdade que se ouve. Estamos perante a recusa do fatalismo. O «rompimento é também, em última análise, uma busca de autenticidade na vivência de uma fé que muitas vezes não se esvaziou por completo, apesar do anterior denominador comum, a igreja, nos finais dos anos 60, ter perdido a sua capacidade mobilizadora e envolvente no quadro da experiência religiosa». O fenómeno é, assim, amplo, tendo a ver com a secularização e com a modernização (política e social) do País, mas também de um nova exigência de espiritualidade e de defesa da dignidade da pessoa humana. Estamos diante de uma Igreja em busca de recomposição.
Testemunho de Nuno Teotónio Pereira
Caras e caros participantes na tertúlia sobre “Os católicos na luta contra a Ditadura”
Não podendo estar entre vós neste momento, saúdo esta iniciativa do movimento Não Apaguem a Memória e do Instituto S. Tomás de Aquino, dada a importância histórica dos acontecimentos de que se ocupará, que estão a cair no esquecimento.
Quando Salazar chegou ao poder, primeiro como ministro das Finanças e pouco depois nomeado Presidente do Conselho, recebeu o apoio massivo dos católicos, o qual persistiu durante muitos anos, apesar do carácter cada vez mais ditatorial do regime. Isso terá porventura acontecido por causa do poder que a Igreja deteve em Portugal durante séculos, que apenas começou a ser contestado após a instauração da República em 1910.
Só assim se pode explicar esse apoio à ditadura salazarista durante tanto tempo e a sua indiferença perante os meios da repressão que o regime impunha e que se sobrepunham, por vezes, à própria Igreja.
De entre estes meios repressivos, os mais cruéis foram sem dúvida a polícia política, que chegava a exercer o seu domínio sobre as direções de todos os grupos de carácter associativo, incluindo os sindicatos de trabalhadores (eu próprio fui por duas vezes excluído da direção do Sindicato dos Arquitetos, apesar de eleito para o cargo), e a censura totalitária que abrangia todo o tipo de publicações e ações culturais.
No que respeita à censura, a atividade era tão despudorada, que todos os jornais publicavam na primeira página um pequeno retângulo onde se lia “Este número foi visado pela Comissão de Censura”.
Quanto à polícia política eram conhecidos os vexames e as torturas por que passavam anualmente centenas de cidadãs e cidadãos.
Perante esta situação ditatorial que durou mais de quatro décadas, a esmagadora maioria da população, que se dizia católica, permanecia de braços cruzados, incluindo o Episcopado, que se mantinha solidário com o regime, não ousando exprimir qualquer crítica ou, sequer, dúvida.
Foi neste quadro que o então bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, escreveu em 1958 uma carta a Salazar na qual denunciava alguns aspetos da situação. Este documento que, evidentemente, não pôde ser publicado em qualquer órgão informativo, levou alguns católicos, que entretanto haviam começado a denunciar os crimes do salazarismo, nomeadamente no seio da chamada Ação Católica, a organizar ações de protesto, através de encontros e publicações clandestinas, assim como de cartas abertas e abaixo-assinados públicos. Entre todos, não posso deixar de citar o P. Abel Varzim e o Engº. Francisco Lino Neto, e ainda minha mulher Maria Natália Duarte Silva, que participou ativamente em todas estas iniciativas.
Mais tarde, na década de 1960, o foco passou a ser a denúncia da guerra colonial, vista como uma injustiça intolerável que atingia o povo português e os povos africanos sob dominação portuguesa e que constituía o “calcanhar de Aquiles” do regime. A luta pela paz, vivificada pelo Concílio Vaticano II e pelas novas responsabilidades reconhecidas aos leigos na Igreja, tornou-se central no pensamento e nas atividades dos então chamados “católicos progressistas”.
A ação dos católicos na luta contra a Ditadura foi-se progressivamente ampliando, ao longo dos anos, sendo uma das suas mais interessantes características o facto de ter construído pontes com muitos outros sectores da sociedade portuguesa – trabalhadores, intelectuais, estudantes – independentemente das suas crenças religiosas. Talvez por esta razão, o seu impacto foi muito além do que o número de pessoas realmente envolvidas o poderia fazer supor.
Lisboa, 16 de fevereiro de 2014
Testemunho de Luíza Sarsfield Cabral
Pediram-me um testemunho sobre a minha intervenção política antes do 25 de Abril… Digo quase sempre que sim a este tipo de solicitações, pois acho importante que não se “apague a memória”… Aceitei o convite também porque o interpretei como uma espécie de homenagem à Natália e ao Nuno Teotónio Pereira.
A minha actividade, nessa época, foi semelhante à de muita gente. No Porto, trabalhei na Mojaf, pertenci à Cooperativa Confronto, depois vim para Lisboa, para a Faculdade de Letras, onde participei nas greves universitárias.
Conheci, então, a Natália e o Nuno Teotónio Pereira, que foram absolutamente determinantes numa maior responsabilização cívica e política de um grande número de pessoas, entre as quais me incluo. Desde então, fiquei sempre ligada ao grupo a que chamam “católicos progressistas”, embora ninguém, que eu saiba, se designe a si próprio desta maneira.
Entrei em contacto com o Direito à Informação, o Gedoc, a [Cooperativa] Pragma, fui várias vezes a Madrid com a Natália e o Nuno para reuniões com o grupo dos Cuadernos para El Dialogo, participei em muitos “terceiros sábados” – uma iniciativa, também da Natália e do Nuno: eram celebrações da eucaristia, que sendo autênticas, serviam de cobertura à troca de informação clandestina.
Das várias actividades, lembro um fim-de-semana em Marvão, na casa do Nuno, em que um grupo de amigos (entre eles o frei Bento Domingues) se encontra num fictício piquenique à beira-rio, enquanto que a minha irmã Teresa e eu acompanhávamos dois amigos até à fronteira, onde “deram o salto” para Espanha para assim fugirem à guerra colonial. Depois, descemos até ao rio e regressámos a nado para junto das pessoas.
Era esta uma ajuda organizada que o casal Teotónio Pereira dava frequentemente.
Acerca do BAC (Boletim Anti-Colonial)
Moro num andar que tem duas portas de acesso, uma dá para a casa e outra para um anexo praticamente independente. Em 1972, instalou-se aí o arquivo do BAC.
Lá trabalhavam o Nuno, o Luís Moita, o Manuel Brandão Alves (que viria a ser preso na Escola Naval da Marinha), o padre jesuíta José Sousa Monteiro e eu. Era sobretudo um trabalho de arquivo; havia muita documentação sobre África e a guerra colonial. Por questões de segurança, não sabia quem elaborava o boletim, nem quem o distribuía. Havia uma história combinada com o Nuno, em como alugava essa parte da casa a um agente técnico. Inventaram-se os pormenores do contracto e eu vendia essa história à família e amigos, que nunca desconfiaram de nada. Claro que a situação obrigava a cuidados. Nessa altura, não podia aceitar convites de certo risco, pelo que volta e meia era criticada, diziam-me que me estava a “aburguesar”. Por exemplo, não fui à vigília da capela do Rato para não pôr em perigo aquilo que tinha em casa.
Até que, a 26 de Novembro de 1973, estava a preparar uma aula, batem à porta. Não sabia das prisões do Nuno e do Luís. Fui abrir, vi que a porta para o anexo estava já aberta, percebi logo…Eram três ou quatro agentes, começaram por entrar para o arquivo. Estavam exuberantes com o que encontravam, “olhem para isto!, diziam alto, atiravam tudo pelo ar, as fotografias de Wiriyamu [massacre cometido pelas tropas portuguesas, em Dezembro de 1972, no norte de Moçambique] voavam… e eu fingia que não tinha nada a ver com aquilo e repetia a história combinada.
Levaram-me para Caxias.
Logo nessa noite, tive o primeiro interrogatório, comprido. Era uma sala grande com muitos polícias, numa berraria. Eu sempre a repetir a mesma história. Fulos, acabaram por ir buscar um cassetete, mas não me bateram. Até que, por fim, mostram-me a fotografia do Nuno, ainda molhada. Foi a evidência: percebi que estava preso.
Mandaram-me para a cela dormir e, no dia seguinte, depois do jantar, deram-me um Valium, que estupidamente aceitei, toda contente. Quando estava no sono mais profundo, acordam-me e levam-me para o reduto sul.
Aí fiquei durante quatro dias e quatro noites em tortura do sono, com interrogatórios violentos: dava-se aquela cena do polícia mau que grita e ameaça e depois, vem o polícia “bom”, que diz, amavelmente: “confesse, confesse, se confessar, amanhã pode estar em casa sossegada”.
Mas havia pouco a dizer, eles tinham apanhado tudo, perguntavam coisas estranhíssimas, queriam saber de pessoas que não tinham nada a ver com aquilo, foram buscar nomes à minha agenda e também perguntavam por uma mala e por explosivos, perguntas, para mim, tão estranhas como tudo o resto. Pelo meio, houve o feriado de 1 de Dezembro, em que estive praticamente sem interrogatórios (os polícias gozaram o feriado), mas continuei sempre sentada na mesma cadeira.
Até que, no último dia de tortura, começaram a implicar com um gravador que eu tinha para as aulas, havia lá qualquer coisa em alemão, eles não percebiam as minhas explicações, uma confusão e lembro-me de dizer ao agente: “Eu já lhe disse… lá em baixo…”.
Ora, eu não tinha saído da mesma sala, mas parecia-me que sim, ainda hoje penso nos interrogatórios como se fossem em salas diferentes. O agente percebeu que eu começava a ter alucinações e mandou-me dormir.
Quero aqui destacar que a ignorância propositada, metódica, sobre acções e envolvimentos das outras pessoas do grupo foi muito importante para mim: ajudou a manter uma certa calma e, sobretudo, não podia dizer mesmo nada, estava ignorante.
A grande angústia em relação aos interrogatórios era o pânico de implicar alguém com as respostas que ocorriam. Foi esta a tortura pior, para mim. Tudo era engendrado para dar insegurança. Ao fugir de uma provocação, corria-se o risco de entrar por um caminho que não se queria. E sem contacto com o exterior, não se podia verificar nada, começava-se a imaginar novos enredos, a ter escrúpulos horríveis de se ter prejudicado este ou aquele, sem controle de nada. Até o híper aquecimento da sala era planeado para provocar alucinações mais rapidamente. Era o princípio da incerteza absoluta. Cá fora, não se pode imaginar o que isso é de tortura psicológica.
Depois, fiquei um mês em regime de isolamento, com alguns interrogatórios pelo meio. Não tinha literalmente nada para me distrair, nem livro, papel ou lápis. No Natal, pedi uma Bíblia, mas não me deram.
Depois do Natal, comecei a ter visitas da família e, no princípio de Janeiro, levaram-me para uma cela com mais três raparigas: a Fátima Pereira Bastos, a Conceição Moita e a Maria José Campos. Já conhecia a Fátima e a Xexão, foi uma alegria, conversámos até às tantas da noite, não ligando aos ralhos da guarda prisional.
Aí fiquei mais um mês e meio. As três pertenciam a grupos de luta armada e tinham sido barbaramente torturadas. Demo-nos muito bem, apesar das diferenças: eu era a da “papelichada”, ou seja, sem grande categoria. Não percebia nada sobre luta armada.
Saí sob caução, à espera de julgamento. Francisco Sousa Tavares, de quem era amiga, ofereceu-se para ser meu advogado.
Quando saí da cadeia, fui para casa do meu irmão Francisco. Lembro-me de que a primeira coisa que fiz foi visitar a mãe da Xexão. E não sei bem que mais andei a fazer, que a Pide começou a mandar-me recados: que tivesse cuidado, que andava a falar demais… Quer dizer, estava a ser seguida… Era o prolongamento da prisão, cá fora.
Voltei à Escola. Do Ministério, veio um despacho: era considerada “pedagogicamente inconveniente” para dar aulas. Soube, mais tarde, que se previa o meu afastamento e não seria colocada no ano seguinte.
Felizmente, deu-se o 25 de Abril.
Notas
1. Acerca do que se passou na Escola depois do 25 de Abril: na pouco sensata euforia de saneamentos que grassava, a Directora foi saneada. Senti o dever de a defender.
2. Em pleno gonçalvismo, cruzei-me no Terreiro do Paço com uma guarda prisional. Reconheci a sua cara, não conseguia lembrar-me donde… Dirigi-me a ela e saudei-a… Só então me dei conta de quem ela era, de onde a conhecia…
3. Digo sempre que não me custa falar sobre Caxias, mas o facto é que estas coisas ficam e, afinal, não me foi assim tão fácil falar…