Psicomúsica — Uma abordagem ao Psicodrama

Texto de Flávio Miguel Duarte Justino. Este texto pretende discutir o uso da música e a sua importância no contexto da psicoterapia. Esta abordagem, denominada por psicomúsica, foi utilizada por Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama. Ao introduzir a música no psicodrama, Moreno pretendeu libertar a espontaneidade e melhorar a comunicação dos intervenientes, facilitando a catarse e a empatia bidirecional a que chamou de “tele”. A psicomúsica é atualmente utilizada em inúmeras situações, desde o acompanhamento a crianças autistas até à recuperação de toxicodependentes. Palavra chave: psicodrama, psicomúsica, tele, catarse, espontaneidade.

“Quem entenda a minha música nunca mais será infeliz.” (Ludwig van Beethoven, 1780- 1827)

Jacob Levy Moreno, psiquiatra, criou em 1921 uma psicoterapia em grupo na qual os intervenientes usam métodos dramáticos para explorar uma determinada ideia ou “verdade” (Moreno, 1964). Esta técnica, denominada por psicodrama, visa a catarse e a libertação da espontaneidade. “O psicodrama é o tratamento do indivíduo e do grupo através da ação dramática” (Gonçalves, Wolff, & Almeida, 1988, p. 43). Kellermann por sua vez, define psicodrama como sendo um método psicoterapêutico, no qual os clientes são estimulados a continuar e completar as suas ações, por meio da dramatização, do roleplaying e da autoapresentação dramática (Kellermann, 1998).

Nos primeiros tempos o psicodrama foi alvo de ceticismo por parte do público e da critica, nomeadamente, em relação à veracidade e autenticidade das encenações,levando mesmo Moreno a atravessar algumas dificuldades financeiras (Gonçalves et al. 1988). No entanto, esta abordagem influenciou Kurt Lewin (1890-1947) e Carl Rogers (1902-1987), entre outros, a desenvolver a terapia de grupo. Atualmente, o psicodrama é usado em vários tipos de terapia, como o aconselhamento pós-divórcio para crianças (Gershoni, 2003) ou o atendimento a pacientes internados em hospitais no Brasil (Câmara & Amato, 2014). Noutros países, como Portugal, o psicodrama também se encontra estabelecido, sendo representado, desde 1986, pela Sociedade Portuguesa de Psicodrama.2

Para Moreno, o conceito central no psicodrama é a espontaneidade, definida por ele como a resposta adequada para situações novas (Moreno, 1964). Sendo por isso, natural a introdução da música (psicomúsica) como libertador dessa resposta, pois é através da música “que expressamos e sentimos o antes incompreendido” (Lima, 2003, p.7). Moreno dividiu a psicomúsica em duas formas: (a) instrumental e (b) orgânica. Na primeira, são utilizados instrumentos como extensões da espontaneidade, enquanto na última é o próprio organismo que serve de instrumento. Moreno favorecia esta última forma por ser mais primitiva e facilitar a improvisação. No seu livro Psicomúsica y Sociodrama (Moreno, 1965) são relatadas duas experiências, uma em cada forma. É proposto um aquecimento com gestos e sons. De seguida, são representadas situações reais ou imaginárias acompanhadas por exclamações cantadas, prontamente repetidas pelo público em coro. Na segunda experiência, Moreno forma uma orquestra de improvisação com músicos da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque em 1931.

Como anteriormente referido, Moreno foi o criador do psicodrama e do uso da psicomúsica nesse contexto. No entanto, foi Jaime Rojas Bermúdez que sistematizou estes processos, possibilitando uma melhor compreensão do ponto de vista metodológico (Bermudéz, 2016). Segundo ele, uma sessão de psicodrama é composta por cinco instrumentos: (a) diretor, (b) auxiliar, (c) auditório, (d) protagonista e (e) cenário; três contextos: (a) social, (b) grupal e (c) dramático; e por três etapas (a) aquecimento, (b) dramatização e (c) comentários. É neste contexto que Bermudéz considera que a música pode não só ser utilizada como objeto intermediário, mas também como um complemento às técnicas de aquecimento.

Bermudéz classifica a música em duas categorias principais de acordo com o seu alvo. A música pode ser dirigida ao individuo ou ao grupo. Se for dirigida ao individuo pode ter as seguintes funções: (a) indutora, (b) suplementar ou (c) complementar. A primeira tem como objetivo estimular o exercício de um dado papel pelo protagonista. A segunda tem como objetivo suscitar sentimento a uma dificuldade de desempenho do papel. A última tem o objetivo de salientar papéis complementares do interveniente. Se a música for dirigida ao grupo, terá uma função (a) homogeneizante,

(b) inibidora ou (c) facilitadora. A primeira, se usada no inicio, pode reduzir as

possibilidades temáticas. A segunda tem como objetivo serenar os ânimos, e a última tem como objetivo acelerar a aparição do tema ou da catarse.

Já na antiga Grécia, Aristóteles, filósofo Grego, refere-se à Catarse como uma descarga emocional, sendo um meio de libertação e purificação da alma. Porém a catarse de Moreno diverge com a de Aristóteles. Para Moreno, a catarse é vista do ponto de vista grupal, num sentido de relação interpessoal, ou seja, a catarse de uma pessoa depende sempre da outra pessoa do grupo (Moreno, 1978). Moreno dá assim inicio à Psicologia social, e pode reclamar para si o título de fundador da psicoterapia de grupo. Sendo a música algo que nos liberta e nos estimula a criatividade e improvisação, é naturalmente, um meio prazeroso e facilitador da catarse.

O neurocientista António Damásio, autor do best-seller “O Erro de Descartes”, trouxe uma visão inovadora sobre os sentimentos e as emoções. Segundo o autor, “a emoção humana, em seu refinamento, é desencadeada até mesmo por uma música […], cujo poder nunca devemos subestimar” (Damásio, 2000, p. 56). O corpo perante um ambiente pantomímico vai, ao som da música, libertando-se aos poucos. De início com pequenos movimentos, deste o tímido abanar da cabeça até ao balancear da anca. Dá-se dessa forma início ao aquecimento preparatório, sem recorrer a qualquer tipo de linguagem verbal, pois esta é substituída pela linguagem corporal que vai libertando o individuo no grupo (Moreno, 1966).

Esta ideia de movimento, ação, criatividade e espontaneidade que caracteriza o psicodrama, vai contra a terapia do divã, tão em voga na psicanalise de Sigmund Freud (1856-1939) e no antropomorfismo dos behavioristas, como John Watson (1878-1958). Moreno é sem dúvida o grande promotor do investimento no individuo e nas relações interpessoais. “Pode-se cartografar uma parte considerável do movimento psicoterapêutico desde o começo do século, tomando o paciente no divã e tirando-o daí para a cadeira, daí para seus próprios pés e, por fim, permitindo-lhe atuar ao vivo os seus relacionamentos” (Moreno, 1983, p.54).

A música surge assim como um elemento libertador do “Eu” (self) interior, sendo esta a forma a mais primitiva dessa libertação. Está presente em todas as culturas e religiões como forma de coesão social, e como força para o nosso self expressar as emoções (Davis, 2008; Koelsch, 2014). Neste contexto, o homem nasce inserido num átomo social, dentro da família, dentro do grupo. Desempenha um determinado papel, sujeito a transformações, evoluindo ao longo da vida e tornando-se dinâmico (Moreno, 1983). Segundo Moreno, “o desempenho de papéis é anterior ao surgimento do Eu. Os papéis não emergem do Eu; é o Eu que emerge dos papéis” (Moreno, 1964, p.25). Na mesma página, Moreno, tal como outros existencialistas, refere que a matriz de identidade é “a base psicológica para todos os desempenhos de papéis” fisiológicos, psicológicos e sociológicos. Deste modo, a teoria dos papéis enclausura a conceção do desenvolvimento biológico, psicológico e social do individuo, sendo naturalmente um dos conceitos fundamentais do psicodrama.

É nesta fase que surge o conceito “tele”. A compreensão empática do outro depois de anulada a transferência inibitória, ou seja, uma “perceção interna mútua entre dois indivíduos”, “a empatia ocorrendo em duas direções” (Moreno, 1965, p. 39). Como referido anteriormente, Moreno diverge de Freud, considerando que esta relação “Télica” é o verdadeiro eixo da cura (Laneiro, 2010; Moreno, 1983).

Atualmente a música continua a ser utilizada como uma forma de terapia, normalmente designada por musicoterapia. Nesta, as facetas físicas, sociais, mentais e emocionais da música são usadas para melhorar a sua saúde em vários domínios, como o desenvolvimento cognitivo e emocional, habilidades motoras e sociais, entre outros. Muitas vezes a música é utilizada com indivíduos com necessidades especiais, em crianças, em idosos, em vitimas de acidentes vasculares cerebrais e em recuperação de toxicodependentes ou alcoólicos (Sales, Silva, & Pilger, 2011). Este tipo de terapia pode ser usado universalmente, pois a música é um fenómeno presente em todas as regiões do globo e culturas conhecidas. Promove as emoções e a expressão das mesmas, favorece a coesão e consciência social, entre muitas outras funções. É especialmente útil para acalmar crianças, mesmo que apresentem desordens neurológicas, como o autismo (Davis et al., 2008).

É inegável a importância da música nas nossas vidas, seja como entretenimento ou como elemento de identificação cultural. Por exemplo, o fado ou os cantares alentejanos, recentemente eleitos pela UNESCO como património cultural imaterial da Humanidade que fazem parte do ADN português. Desde o pop rock americano até às grandes obras clássicas como a 9ª sinfonia de Beethoven ou o rei Lear de Shakespeare, a música forma o cordão umbilical da Humanidade.

Bibliografia

Câmara R. A., Amato M.A. (2014) A vivencia de pacientes com câncer hematológico sob a perspetiva do psicodrama, Revista brasileira de psicodrama

Damásio, A. R. (2000). O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento em si. São Paulo: Companhia das Letras

Davis, W.B., Gfeller, K.E. e Thaut, M.H. (2008). Uma introdução à musicoterapia: teoria e prática . American Music Therapy Association. 8455 Colesville Road Suite 1000, Silver Spring, MD 20910.

Gershoni J. (2003). Psicodrama no século 21: aplicações clínicas e educacionais. Nova York: Springer

Gonçalves, C. S., Wolff, J. R., & de Almeida, W. C. (1988). Lições de psicodrama: introdução ao pensamento de JL Moreno. Editora Agora

Kellerman, P.F. (1998). Sociodrama Análise de grupo: 179-195

Koelsch, S. (2014). Correlações cerebrais de emoções evocadas pela música. Nature Reviews Neuroscience , 15 (3), 170-180.

Laneiro, T., Hipólito, J., Roriz, P. (2010). Psicodrama: raiz moreniana e centrado na pessoa. Psique-Anais de Psicologia, 181-198

Lima, C. O. (2003). Musicoterapia e Psicodrama: Relações e similaridades Moreno, J. L. (1964). The first psychodramatic family (No. 40). Beacon House Moreno, J. L. (1965). Psicomúsica y psicodrama. Buenos Aires, Hormé

Moreno, J. L. (1966). Psicoterapia de grupo y psicodrama. Fondo de Cultura Económico Moreno, J. L. (1978). Psicodrama. Editora Cultrix.

Moreno, J. L. (1983). Fundamentos do psicodrama (Psychodrama, Vol. 2. – The Foundations of Psychotherapy).

Rojas-Bermúdez, J. G. (2016). Introdução ao psicodrama. Editora Agora.

Sales, C. A., Araujo da Silva, V., Pilger, C., Silva Marcon, S. (2011). A música na terminalidade humana: concepções dos familiares. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 45(1).