Uma abordagem à semiótica e ao hibridismo que identifica diferentes tipos de relação entre a poesia e a fotografia, quando coexistem no mesmo objeto artístico. Texto de Vítor Alves Silva. Revisão de João N.S. Almeida. Palavras-chave: Fotografia; poesia; semiótica; hibridismo.
1. Introdução
Apesar das associações recorrentes entre imagem e escrita em textos teóricos na área da semiótica[1], parecem existir, atualmente, poucas entradas no estudo do caso particular das relações entre a fotografia e a poesia, o que merece alguma atenção.
Embora seja praticamente impossível de o sustentar, é provável que o maior fator explicativo desta falta de informação teórica seja a aparente incompatibilidade na forma de apresentação de ambas as linguagens (Doreski, 2008. p.1). No entanto, tendo em conta a quantidade de objetos artísticos que as empregam em simultâneo e a envergadura histórica de alguns exemplos (figuras 1, 2 e 3), é importante questionar esta suposta incompatibilidade.
Numa tentativa de democratizar esta discussão, propus-me à revisão de alguns artigos importantes na área da estética e da semiótica; mais especificamente da intersemiótica[2] aplicada a vários sistemas de representação[3]. O artigo que se segue procura, no seguimento desta proposta, estabelecer conexões entre eles e compilar conceitos importantes, que são aplicáveis à forma como a poesia e a fotografia se podem relacionar num objeto artístico comum. As referências principais apoiam-se no trabalho de Adriana Batista e Stephen Langmann.
2. A leitura do texto, a leitura da imagem e a leitura de formas híbridas de ambos
Poesia e fotografia são formas de arte distintas. Apesar das suas diferenças, várias fotografias são frequentemente descritas como poéticas, e vários poemas se ancoram na transmissão de uma ou mais imagens. O que podem partilhar estas duas linguagens, e de que forma podem funcionar, em conjunto, no mesmo objeto artístico?
Embora a compreensão das relações estabelecidas entre poesia e fotografia esteja, atualmente, incompleta, sabemos que a anexação de textos e imagens é cada vez mais capaz de produzir mensagens elaboradas e complexas (Baptista, 2008, p.2). Inevitavelmente, a descodificação desta forma de informação exige competências muito para além das específicas a cada meio. Para as percebermos, é preciso, primeiro, analisar a forma como ocorre a leitura em ambos os sistemas de representação.
No caso de textos verbais, é possível realizar uma leitura puramente decifradora da linguagem (já que é possível ler um texto e decifrar o significado individual das palavras sem que isso se traduza numa compreensão da mensagem criada através da soma destes significados) mas também uma leitura de decifração e de compreensão (Goldsmith, 1984). No sistema visual, no entanto, não faz sentido falar de uma leitura de pura “decifração”, uma vez que a maior parte de nós tem a capacidade de identificar elementos constituintes de fotografias e quadros apenas por meio de conhecimento empírico. Esta capacidade está codificada na faculdade da percepção humana e é comum a todas as culturas (Gombrich, 1950). Mesmo quando as imagens são puras abstrações, é fácil perceber que existe uma deliberada desconexão do real. Por esta razão, pode dizer-se que ler uma imagem é necessariamente compreendê-la: a fronteira entre percepção e cognição está muito mais esbatida do que no caso da leitura.
É, claro, necessário problematizar a mediação dos olhos/cérebro e a perceção da imagem. Não será este processo semelhante ao processo de descodificação de texto e da palavra escrita? Talvez, mas os olhos e o cérebro, por associação ao ato de ver, não constituem um sistema de codificação de modo arbitrário como o texto. Isto pode significar que não existe nada a mediar a transmissão de conteúdos visuais em imagens, à exceção da nossa componente interpretativa e das relações simbólicas que os objetos representados travam entre si.
As relações retóricas estabelecidas entre texto podem, também, ser aplicadas à imagem e à forma como elementos visuais se relacionam[4]. Imagens, tal como textos, revelam recursos estilísticos que se assemelham ao que no contexto textual designamos como metáforas e comparações, através da soma das características de cada um dos seus elementos compositores. É provável que diferentes elementos, pertencentes a diferentes sistemas, quando em coexistência, possam alimentar metáforas e outros recursos estilísticos híbridos, criados por elementos textuais e imagéticos em simultâneo. A publicidade parece ser o melhor exemplo desta possibilidade (figura 4).
O que observamos nesta imagem é uma relação bipartida, em que o texto afeta a compreensão da imagem e a imagem a do texto, através da adição de significados referida. A Coca-Cola, por influência do texto, é compreendida como um objeto capaz de proporcionar felicidade e, da mesma forma, a palavra “felicidade” e o seu significado passam a associar-se à imagem da garrafa, relação complementada pelo facto da garrafa também ser mais volumosa no centro, ligando-se ao conceito de “abrir” ou “alargar”.
O grau de correspondência entre texto e imagem é, no entanto, variável, e uma condicionante importante na forma como definimos e estabelecemos estas relações de significado. Em Baptista, 2008, a tipologia apresentada divide as incorporações entre texto e imagem em três categorias: textos mistos, textos híbridos e textos fusionais. Por textos mistos compreendem-se aqueles em que cada uma das linguagens retém, na maior parte, a independência na informação que transmite, e em que nenhuma afeta significativamente a outra. É exemplo deste tipo de relação o livro “Facile”, que combina a poesia de Paul Éluard com a fotografia de Man Ray (Figura 5).
Académicos como Stephen Langmann (2018) escreveram extensivamente sobre este tipo de texto, realizando análises completas de poemas que surgiram através do visionamento de fotografias e que, a posteriori, se lhes associaram. É proposto, em “The Intersemiotic Affordances of Photography and Poetry”, que exista uma grande componente interpretativa no estabelecimento destas alterações de significado inter-linguagens. Mesmo que o texto tenha meramente uma função descritiva e validadora da imagem, é provável que devido à intervenção da faculdade da linguagem verbal se desbloqueie outra camada da compreensão do campo visual. No entanto, e tendo em conta as características de anexação deste tipo de texto em particular, é preciso pensar sobre se o significado é potenciado e expandido para criar algo novo – o que provavelmente não é o caso. No caso de “Facile”, a poesia insere-se, em muitas das ocasiões, no espaço negativo da fotografia, e como consequência, terá, certamente, um efeito pronunciado na interpretação da imagem (e vice-versa), mas não potencia a criação de um significado conjunto único, porque não cria nova informação.
Nos textos híbridos, no entanto, isto já acontece, e é mais fácil prová-lo. Estes textos têm o potencial de confundir e de criar significados novos porque são caracterizados por uma correspondência significativa entre elementos dos diferentes campos, e são capazes de gerar um produto completamente dinâmico e bipartido, em que as relações sémicas e retóricas são intercomplementares e até, ocasionalmente, interdependentes (Batista, 2008, p.5). Também são percecionados de forma diferente porque não há uma separação evidente das linguagens.
Na figura 6, por exemplo, o texto assume a dimensão iconográfica da voz e a imagem consegue, com o texto, criar a ilusão de uma fala. Parece que o que está a ser gritado é a palavra presente no triângulo negro, o que não seria possível se a imagem da senhora existisse por si só, levando-nos a interpretar uma vocalização sem conteúdo específico, ou se o texto existisse por si só, sem nuances gráficas que denunciassem cinefilia e movimento, como é aqui o caso. Apesar de existirem mais fatores em jogo nesta imagem, que é desenhada e contém um elemento gráfico proveniente de cor e do jogo de linhas, este efeito poderia facilmente ser mimetizado com poesia, neste ou noutros contextos.
Nos textos fusionais, que são o caso mais profundo de anexação entre texto e imagem, existe mais campo para experimentação e inter-relações sémicas de maior complexidade. Segundo Batista (2008, p. 5), a própria conceção do objeto simultaneamente textual e visual é híbrida e não permite a separação das duas linguagens, o que significa que os recursos de cada uma funcionam de forma transversal e equitativa em relação ao produto final. Na verdade, será errado referirmo-nos a este tipo de texto como uma anexação de uma forma de arte noutra, porque o resultado é uma nova experiência estética por completo. É impossível classificar o objeto artístico no seu todo como texto ou imagem porque assistimos a uma transformação literal e simultânea de ambos – o texto surge aos olhos do sujeito como imagem e a imagem surge também como constituída pelo mesmo material que o texto.
Tive acesso a poucos casos estudados, mas o maior exemplo deste tipo de relação parece encontrar-se na poesia concreta e nos retratos tipográficos. A fotografia está, geralmente, mais presente na segunda que na primeira, mas também existem exemplos de poesia concreta que envolvem fotografia. Nas figuras 7 e 8, a fotografia e o texto são inseparáveis, e partilham quase todos os recursos retóricos e sémicos.
Neste sentido, nestes domínios específicos da prática artística, a fotografia e a poesia não só se podem complementar, como podem criar uma completa interdependência que quase redunda numa dissolução das suas características particulares.
3. Considerações finais/conclusão
Diferentes níveis de incoporação, no mesmo espaço de leitura, de fotografia em poesia (e vice-versa), geram diferentes relações sémicas e, consequentemente, diferentes relações de significado. Estas relações podem expandir e criar novos conteúdos para compreensão e interpretação, e são até dotadas do potencial de criar uma experiência estética completamente nova através de textos fusionais. Como resultado, a intersemiose entre as linguagens quando ambas coexistem revela muito potencial criativo, por permitir uma teia relacional que pode intensificar, complexificar, aprofundar e criar novas mensagens num objeto artístico.
Notas
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A semiótica é a ciência dos modos de produção, de funcionamento e de receção dos diferentes sistemas de sinais de comunicação entre indivíduos ou coletividades. ↑
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A intersemiótica é a área da semiótica que estuda as relações simbólicas entre duas partes. Passa principalmente pela compreensão das relações de significado entre dois objetos diferentes que comunicam entre si, e das formas como se conseguem influenciar um ao outro. ↑
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Entendam-se por sistemas de representação todos os meios que nos permitem mostrar e explicar o mundo à nossa volta (sistema verbal, sistema visual). ↑
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É importante mencionar que, apesar da aparente importação de terminologia relativa às figuras de estilo, estas não são intransigentes e exclusivas ao sistema verbal. ↑
Referências
Baptista, A. (Outubro de 2008). Texto e imagem: Um mais um igual a outro. 7.º Encontro Nacional (5.º Internacional) de Investigação em Leitura, Literatura Infantil e Ilustração. Braga: Universidade do Minho, pp. 1-7.
Doreski, W. (2008). Contingency in Photography and Poetry. pp. 1-10.
Excellent Examples of Typography Portraits. (s.d.). Obtido de Hongkiat: https://www.hongkiat.com/blog/28-excellent-examples-of-typography-portraits/
Goldsmith, E. (s.d.). Research into Illustration: An approach and a review. Cambridge: Cambridge University Press.
Haiwen, L. (s.d.). Concrete Poem. Obtido de LinhaiwenArt: Fonte: https://linhaiwen.wordpress.com/2012/02/25/concrete-poem/
Kōbō Abe, E. D Saunders. (1973). The Box Man. U.K.: Vintage Publishers.
Langmann, S. (2018). The intersemiotic affordances of photography and poetry. DE GRUYTER MOUTON, pp. 86-100.
Lilya Brik | Designers – Rodschenko. (s.d.). Obtido de Tipógrafos: http://www.tipografos.net/designers/rodschenko.html
Madloch, J. (2006). JOSEPH BRODSKY: AT THE CROSSROADS OF POETRY AND PHOTOGRAPHY. pp. 37-47.
Man Ray, P. É. (1935). Facile. U.K.: Editions G.L.M.
Metáfora – Significado, importância e exemplos. (s.d.). Obtido de Trabalhador: https://trabalhador.pt/metafora-significado-importancia-e-exemplos/
Sontag, S. (2008). On Photography. United Kingdom: Penguin UK.
Walker Evans, J. A. (2000). Let Us Now Praise Famous Men: the American Classic, in Words and Pictures, of Three Tenant Families in the Deep South. Boston: Houghton, Mifflin.
Gombrich, E. (1950 ). The Story of Art. London: Phaidon.