Trazemos hoje um tema por vezes levantado no discurso público e que envolve três pontos distintos. Comecemos por elencar as pessoas que queremos destacar para ilustrar a questão.
Primeiro, Isabel do Carmo, hoje médica, talvez ainda activista política, pertencente no passado a uma organização anti-fascista, as Brigadas Revolucionárias, no tempo do antigo regime, e, já após a revolução, o Partido Revolucionário do Proletariado, ambas envolvidas em actividade de luta armada, assassinatos e terrorismo, presa e condenada em tribunal por cumplicidade em atentados à bomba. Segundo, Mário Machado, hoje advogado e activista político de direita nacionalista, talvez ainda neo-nazi, condenado no passado em tribunal por agressões e outro tipo de criminalidade armada. Terceiro, Otelo Saraiva de Carvalho, já desaparecido, militar português responsável pela organização operacional do golpe militar de 1974, mais tarde envolvido em actividades de luta armada, assassinatos e terrorismo através das Forças Populares 25 de Abril, e condenado em tribunal por participação nesses movimentos. Por último, Camilo Mortágua, hoje empresário reformado, ex-activista no tempo do anterior regime, tendo participado em vários actos de criminalidade de luta contra a ditadura do estado novo como sequestros e assaltos, sem mortandade envolvida.
Como nos devemos referir a estas pessoas quando as citamos em colóquio, quando as entrevistamos para um orgão de comunicação social, quando nos referimos a elas em conversa informal? Como “políticos” — que, de modo ou outro, acabaram formal ou informalmente por ser —, como “activistas”, categoria que nenhum deles negará e que está na base das actividades que levaram a condenações criminais — ou como “criminosos” — ou qualquer variante desse termo, como, por exemplo, “terroristas”, “assassinos”, “psicopatas”, “fanáticos”, “anti-democratas”, “totalitários”, etc.? Esta é a questão que queremos deixar.
É bom lembrar que o sistema penal português é de tendência regenerativa, ou seja, não se baseia no princípio de uma pessoa ficar marcada para toda a vida por actos que cometeu, mas sim na possibilidade de re-integração na sociedade após cumprimento de pena. Isto aplica-se a qualquer pessoa da lista que elencámos, mesmo, em princípio e não em efeito, aqueles que não chegaram a julgamento. Ou seja, em princípio fará sentido que nos possamos referir a estas pessoas pelas descrições menos abonatórias caso o contexto assim o requeira: se o contexto for criminalidade política pós-revolucionária, actividade armada neo-nazi, terrorismo em democracia, ou sequestro e assalto em ditadura, as descrições de cada uma das pessoas poderão passar por esses termos. Caso contrário, não se vê como a legenda de “médica”, “advogado”, “militar” e “empresário” não sejam as mais adequadas à situação de citação generalista, dado que é comum referirmo-nos às pessoas pelas suas profissões ou actividades principais.
É bom lembrar também que, por exemplo, num exercício quase de redução ao absurdo, se poderia referir a Adolf Hitler como “pintor” — se algum interesse da história de arte houvesse na obra do dito sujeito — ou a Winston Churchill também como “pintor” ou “crítico de arte” ou “prémio Nobel da literatura”, ou ainda José Estaline como jogador de bilhar e jardineiro tardio. Nenhuma destas descrições corresponderia a uma falsidade, mas simplesmente a uma desadequação mais que provável conforme o contexto da apresentação. Não seria absolutamente impossível encontrar contextos em que elas fossem válidas, mas como é óbvio as descrições mais adequadas às figuras corresponderiam às funções políticas ou civis principais em que participaram.
Não parece assim que estes critérios envolvam nada de particularmente extraordinário nem complexo. Chamamos assim a atenção para todas as vozes polarizadas, sectárias e/ou partidárias, que entendem que alguma ou algumas ou todas destas pessoas devem ser categorizadas ou como os santos que nunca foram ou como os psicopatas que nunca ninguém em absoluto é, que tenham um pouco mais de juízo e cuidado e, principalmente, tenham em conta o modelo moral para que aponta não apenas o sistema penal português mas também a cultura em que vivemos, que não pressupõe a marca de letras escarlates insolúveis no cadastro e no carácter das pessoas para todo o sempre. E, por último, que as pessoas não são monólitos uniformes: são criaturas complexas, com aspectos de bondade e de maldade, de erros e acertos, e com uma capacidade para disposições que vão de acordo com o que pensamos e outras que não vão. Entendamo-las portanto assim, na devida complexidade, sem deixar de, quando necessário, “chamar os bois pelos nomes”.