Tradicionalmente visto como um jogo menor no catálogo da Rockstar Games – um mero spin-off de GTA passado numa escola –, Bully (lançado em Portugal sob o nome alternativo Canis Canem Edit) pode ser visto, por outro lado, como um aperfeiçoamento da fórmula que tornou os seus predecessores tão famosos, chegando mesmo a superiorizar-se, em alguns aspetos, aos títulos clássicos da série Grand Theft Auto.
Texto de António M. Pereira. Revisão de João N. S. Almeida.
Tradicionalmente visto como um jogo menor no catálogo da Rockstar Games – um mero spin-off de GTA passado numa escola –, Bully (lançado em Portugal sob o nome alternativo Canis Canem Edit) pode ser visto, por outro lado, como um aperfeiçoamento da fórmula que tornou os seus predecessores tão famosos, chegando mesmo a superiorizar-se, em alguns aspetos, aos títulos clássicos da série Grand Theft Auto.
Um desses aspetos diz respeito ao problema tipicamente conhecido como dissonância ludo-narrativa – a descontinuidade entre a forma como o protagonista interage com o meio em situações subordinadas à narrativa do jogo (segundo a qual o protagonista possui uma personalidade específica e segue um caminho coeso pré-determinado) e a forma como ele pode agir, conforme a vontade do jogador, fora desses momentos pré-planeados. De uma forma simples, a dissonância ludo-narrativa ocorre quando, por exemplo, assumimos o papel de um assassino de elite, como em Hitman, e falhamos uma missão ou completamo-la da forma mais atabalhoada e menos profissional possível, ou quando assumimos o papel de um polícia, como em True Crime: New York City, e podemos sair à rua e matar tudo o que nos apareça à frente sem perder nem o jogo nem o distintivo (sim, este último exemplo pode ser contestado em 2021, mas não vamos entrar por aí).
Esta questão pode parecer, aos olhos de alguns, mera mesquinhice, mas é difícil não reconhecer que isto pode, em muitos casos, ter um impacto negativo no investimento emocional do jogador na história que está a experienciar. Porque é que nos devemos preocupar com a ameaça de uma fação rival em qualquer GTA, se a qualquer momento podemos entrar numa base militar, roubar um tanque e destruir uma cidade inteira? Porque é que, em GTA IV, a escolha entre matar ou não Darko Brevic (momento central na narrativa) haveria de ter algum impacto emocional, se por essa altura já ultrapassámos, de modo blasé, o recorde de mortes dos maiores serial killers da história? A liberdade total concedida ao jogador, por norma, anula a possibilidade de lhe oferecer uma história coesa e substancial, e vice-versa. As tentativas de conjugar os dois pólos resultam quase sempre na desvirtuação de ambos.
Ao longo dos anos temos assistido a várias tentativas de contornar este problema, com vários graus de sucesso – desde a atribuição de tabelas de “pontos morais” associados a várias ações, que podem resultar em repercussões positivas ou negativas para o jogador (medidas destas raramente surtem o efeito desejado), até medidas mais originais como a inclusão do psicopata Trevor enquanto personagem controlável em GTA V, que pode ser vista como um modo de dar aos jogadores um avatar para ser utilizado precisamente nos momentos em que não existe outra intenção senão a de criar caos e destruição, salvando a face dos dois outros protagonistas mais moderados e racionais.
Com a escolha do cenário escolar e a preocupação demonstrada em fazer valer as leis e princípios básicos que regem essa realidade, Bully é um dos poucos jogos que se pode gabar de resolver a dissonância ludo-narrativa de modo quase perfeito. Ao centrar a ação num adolescente rebelde abandonado numa escola repleta de rufiagem, Bully dá-nos rédea solta para fazermos tudo o que seria imaginável neste contexto, sem que essa liberdade rompa com os limites da plausibilidade. Por um lado, não é preciso muita ginástica mental para conciliar o caráter e a sua viagem diegética do protagonista com o desejo instintivo que o jogador sente de explorar um mundo sandbox e testar todas as diabruras que podem ser feitas nele, quando a personagem que controlamos é um rapaz a quem atribuímos sem qualquer reserva esses mesmos impulsos. Por outro lado, o jogo certifica-se de que as nossas opções não vão além daquilo que seria expectável para uma personagem como Jimmy Hopkins, o nosso anti-herói em fase de puberdade. Assim, nos tempos livres entre as aulas e as missões que avançam a narrativa, podemos pregar partidas, brigar, armar lutas de comida no refeitório, fugir ao recolhimento obrigatório e armar caos na cidade, munidos de ovos e bombinhas de mau cheiro, ou entrar à socapa no dormitório feminino para um encontro com a namorada… as hipóteses são infindáveis (aquelas que nos são diretamente sugeridas pelo jogo, sob a forma de missões secundárias, representam apenas uma fração de tudo o que se pode fazer na escola e arredores, dado que haja o espírito criativo necessário), e o jogo vai expandindo o seu leque de atividades extracurriculares à medida que progredimos na história, mas sempre mantendo as regras básicas que impõe a si mesmo – segundo as quais, por exemplo, as armas disponíveis, em vez de pistolas e granadas, não vão além de fisgas e estalinhos, e a violência nunca escala de forma hiperbólica a ponto de justificar mais que um raspanete ou castigo por parte dos contínuos ou da polícia.
O efeito prático de tudo isto remete-nos para aquele termo famoso, e sempre um pouco vago: imersão. O que significa imersão, neste caso? Muito simplesmente facilitar a identificação, em todos os momentos, do jogador com a personagem controlada e com o mundo em seu redor, de modo que haja um maior investimento emocional e uma maior gratificação e catarse nas ações quer praticadas, quer sofridas durante o ato de role play.
Este apontamento representa uma de várias perspetivas através das quais podemos olhar para Bully como um jogo verdadeiramente inovador e único na sua geração. A este respeito, é pena verificar que muitas das qualidades deste jogo parecem ter ficado esquecidas sob o manto da polémica que o envolveu desde o seu lançamento, com as acusações de glorificação da delinquência e validação e incentivo da prática de bullying. Por estas razões, a crítica em torno do jogo foi praticamente forçada, desde o início, a gravitar para tópicos morais, quer atacando o jogo por razões éticas, quer defendendo o jogo destes ataques, e muitos aspetos interessantes e à frente do seu tempo ficaram, infelizmente, por explorar com a atenção devida e sem peso na consciência.