Sobre a aparente divisão de método, de objecto e de definição substancial entre a escola analítica e continental da tradição da filosofia.
Texto de Ricardo Fortunato. Revisão de Joao N.S. Almeida.
Se chegarmos de rompante ao assunto em causa, a área do conhecimento designada por filosofia, é enigmática a razão para existência de um problema na sua definição, problema esse levantado pela aparente divisão de método entre a escola analítica e continental. Enigmática é essa divisão não só para o público em geral mas também, de modo bastante similar, para muitos estudantes e investigadores de humanidades que não se revêem exactamente em nenhuma distinção substancial entre a prática que se realiza nesses dois campos. Deixando de parte, por ora, considerações de ordem histórica e cultural sobre a tipologia desses dois movimentos, podemos observar que ambos se dedicam de maneira genérica ao estudo do pensamento sob várias vertentes; resumindo, adicionalmente, a definição, verificamos que todas essas vertentes acabam por ser subsumidas numa definição que implica a constituição do pensamento enquanto sistema ontológico.
A primeira destas escolas, a analítica, tende a reduzi-lo a operações de relação entre a percepção, a cognição, o sujeito e o mundo, enquanto que a segunda, a escola continental, alarga as tentativas de descrição e sistematização às expressões da metafísica, assumindo também a imperfeição inerente da característica representacional da linguagem. A primeira, no entanto, apesar de muitas vezes questionar precisamente essa característica da linguagem enquanto absolutamente moderadora das nossas impressões filosóficas, define no entanto o mundo principalmente através dela, encontrando na estrutura da linguagem — quer através dos ramos da filosofia da linguagem comum, quer da filosofia da linguagem clássica — uma justificação para atribuição de estado ontológico aos objectos.
Na escola continental, por outro lado, o problema quase nunca passa por uma invalidação da metafísica — uma invalidação que poderá ter no ramo analítico, estranhamente, raízes morais e moralistas — antes pelo contrário: o navio da escola continental está sempre apontado para a enunciação possível dos apriorismos do pensamento, sem grande barreira de prurido intelectual ou moral perante aquilo que não consegue ser dito, etc. Colocando assim em causa a separação entre sujeito e objecto, a filosofia dessa escola, aliás a mais antiga, aproxima-se dos limites do enunciável ou, respeitando a tradição objectual desta escola, do visível, do demonstrável e do exemplar, e não os respeita, dando ao logos, talvez devido às raízes metafísico-religiosas desta escola, um poder de resistência superior ao que lhe é dado pela escola analítica, cujo soçobrar no nonsense dos enunciados ou das proposições (terminologia muito sintomática das manias analíticas) é muito mais determinante para invalidar o conteúdo.
A divisão é, retomando o ponto inicial, estranha. Não se concebe uma escola de pintura que se leve a sério e proponha outra escola de pintura como não-pintura, que é o que certos iluminados da escola analítica, ainda hoje profissionais em muitos departamentos de filosofia das universidades, algumas vezes propõem e praticam; podem inclusive orgulhar-se de nunca terem lido Aristóteles, de modo semelhante a alguém que queira estar a par do estado-da-arte da ciência da física não encontre em Galileu Galilei nada de importante. Mas tal como no caso da pintura a noção de flatness resolve o problema da definição, no caso da filosofia poderá ser também fácil encontrar uma noção que resolva o problema, noção que aliás existe e que é substanciada pelo contínuo da tradição não só ocidental mas também de outras culturas.
Perante isso, a objecção da escola analítica à tradição da filosofia, que se pratica desde há mais de 2500 anos parece assim enormemente invulgar. Poderemos tentar explicá-la com uma definição que emerge de uma panorâmica sobre a linha argumentativa típica da filosofia analítica: esta definição é a de que a filosofia analítica não é verdadeiramente filosofia no sentido abrangente e lato do termo, mas é sim uma sub-especialização restritiva ou dessa prática ou de uma outra não inteiramente nativa à tradição; isto porque está subentendido na definição de filosofia, e esta categoria tem de caber em algum ramo do saber, a investigação dos pressupostos do conhecimento que muitas vezes parece negado pelos pruridos da tradição analítica que prescrevem o silêncio para aquilo de que não conseguimos falar (conselho wittgensteineano cuja redundância literal sugere que terá sido mal lido).
A raiz da escola analítica recolhe muito nos preceitos daquilo a que se chamou o positivismo lógico — preceitos que entretanto vieram a ser negados por alguns dos seus entusiastas — uma escola muito efémera, como tantas outras na história da filosofia, focada na crença de que o mundo é redutível a ser espelhado por um conjunto de regras, unidades e processos lógicos enunciáveis pela linguagem. Mas torna-se importante saber exatamente qual é o estilo da linguagem que obtém os seus praticantes a partir dessa redução da linguagem natural a uma linguagem lógica. É como se pretendesse reduzir uma conversa, composta por discursos, a um esquema de relações sonoras, tal como muitas vezes fazemos com os cantos dos passarinhos e dos animais em geral, numa perspectiva das ciências naturais. Tem piada, tem graça, mas no final apetece dizer: está bem, mas podemos agora voltar a falar do assunto mesmo? Ou seja, é incerto se os preceitos e os fins encetados para as criaturas selvagens têm paralelo possível no que possamos fazer quanto ao universo da mente humana, que é aliás o universo onde todas estas coisas cabem, e nenhum outro.
A divisão entre as duas escolas acaba por parecer tão filosoficamente irrelevante, ou deformada, que na verdade talvez a questão se resuma a política e não realmente a filosofia. Mais uma vez, este texto deixa tal ideia apenas no âmbito da sugestão, dado que não há aqui espaço para a analisar em profundidade. Apontemos apenas que, além das matrizes culturais ligadas a cada uma dessas escolas, a questão também está ligada ao jogo de luz e sombras, de escondidas, que definir o objectivo da filosofia envolve: uns dizem que é para resolver problemas (fica por saber se até hoje se resolveu algum problema na história da filosofia) e outros que dizem que é apenas para fornecer novas e infindáveis e cíclicas re-descrições dos mesmos problemas.
Tentaremos assim concluir apresentando algumas formas abreviadas de definir estas áreas aparentemente tão equivocadas na sua distinção: a filosofia analítica como uma série de micro-especialistas (Williard Quine, Donald Davidson, e.g.) resolvendo alguns micro-problemas levantados por longas teorias previamente enunciadas de autoria de ambos os macro-especialistas (Ludwig Wittgenstein, J.L. Austin) que não sabiam exatamente o que estavam fazendo e eram absolutamente anti-sistemáticos ao contrário do continental Emmanuel Kant, do continental Friedrich Hegel, etc. Além disso, a falta de entendimento e consenso quanto à qual é o objectivo da filosofia leva a aparentes ciclos viciosos, bloqueios meta-filosóficos, diferenças de postura intelectual: às vezes temos a sensação de que a filosofia analítica passa 40 anos tentando resolver ou completar um problema apenas por teimosia.
Na escola continental, parece assumido que a prática da filosofia – ou a prática simplesmente do pensamento resoluto – não analisa necessariamente, não é analítica necessariamente, não pretende necessariamente ser precisa e construir um sistema. Não é assim claro se aquilo a que chamamos de filosofia analítica pretende assumir que a abordagem analítica é a partida um absoluto corrompido por abordagens menores, ou se ao invés disso ela procede por subtração, estabelecendo primeiro o que está errado nas abordagens filosóficas tradicionais e mantendo o que é certo. Em outras palavras, se é primeiro platônico, indo buscar o significado do que é analítico como se fosse uma ideia, ou se é primeiro aristotélico ou pragmático ou algo desse tipo, significando que os conteúdos a priori absurdos e avulsos do mundo empíricos são dados como tais, e devem-se usar critérios em a fim de estabelecer a funcionalidade para nos desses conteúdos, não recorrendo necessariamente ao essencialismo mas antes ao que funciona, de preferência de maneira não muito enigmática.
Tal tradição continental, parece ser, para todos os efeitos, a antiga tradição de filosofia; afinal, parece assumido que a área do pensamento a que chamamos esse nome tão impreciso englobará, naturalmente, elementos meta-filosóficos que se ponham a si própria em causa, sem nenhum receio que a ferramenta aqui em uso quebre o objecto sobre o qual incide; e englobará também aquilo que ainda desconhecemos que pode englobar, pela simples razão de que uma área que pense sobre o próprio pensamento tem naturalmente de incluir tudo o que o possa pressupor, hipoteticamente ou verificavelmwnte, pois senão ficaríamos sem saber onde o por, é estaríamos constantemente a inventar metafilosofias e metametafilosofias conforme a necessidade dos problemas levantados nos levasse, possibilidade que nada mais parece fazer do que alimentar lixo terminologico que tende cada vez menos à precisão e mais ao supérfluo.
Há, por fim – e este é o único apontamento histórico-cultural que se vem aqui propor – que questionar se essa é uma diferença entre a filosofia voltada para o passado, como nas tradições continentais e metafísicas, ou voltada para o futuro, como nas escolas analíticas anglo-salões. E questionar também se isso se deve a um passado anglo-salão um tanto bárbaro, menos do que as culturas grega e latina clássicas. portanto, se encarar o futuro é uma forma bárbara e insincera de não olhar para o passado.