Sobre micromanifestações na Faculdade de Letras de Lisboa

Sobre a birra de quinze manifestantes na Faculdade de Letras de Lisboa e a amplificação que a comunicação social e as redes sociais fazem do assunto, em nada correspondente à opinião da maioria dos estudantes. Texto de Ricardo Fortunato. Revisão de João N.S. Almeida e Ana Sérgio. Imagem: em cima, as manifestações massivas de estudantes em 1973. Em baixo, os 15 pobres diabos a tocar viola a porta da sala de aula do anfiteatro um.

Em primeiro lugar, não existe qualquer comparação possível que não represente um exercício abjecto e de péssimo gosto pretender que existam paralelos entre, por um lado, as cargas policiais de alvos aleatórios e em massa que existiram no ano de 1973 na Faculdade de Letras de Lisboa, e das quais muita gente hoje ainda se recorda, e, por outro lado, a acção perfeitamente cirúrgica — aliás irrelevante se não fosse amplificada e exaltada pelos órgãos de comunicação e pelas redes sociais — em que retiraram três alunos colados ao chão do átrio da Faculdade de Letras depois de terem passado uma semana inteira a fazer barulho no átrio e a bloquear a entrada do anfiteatro principal, sendo alvo de queixas de vários outros alunos (sim, os alunos não são só aqueles que aparecem nas notícias, são também aqueles que querem estudar e trabalhar e não aparecem nas televisões, nos sites, nas redes sociais).

A comparação de que falávamos é de mau gosto suficiente, mas ainda pior é a comparação entre a polícia de altura, de 1960/1970, antes da profissionalização muito mais desenvolvida a que foi sujeita a partir dos anos 80, e a polícia de hoje, muitíssimo mais educada para lidar com variadíssimos tipo de situações. Esta é também uma comparação não propriamente de mau gosto mas simplesmente proveniente ou de ignorantes, ou de gente que se lembra do que foram esses tempos, por via presencial, ou de gente que ouviu relatos de terceiros quando aos horrores desses tempos e que mistura tudo numa associação primária de “polícia dentro da faculdade = ditadura fascista”. Nenhuma destas três é uma reação racional que mereça grande respeito. Outro ponto importante e porventura relevante e muito definidor da situação em causa é que os jornalistas presentes na apresentação dos ditos pobres diabos ao tribunal, nesta segunda-feira, eram cerca do triplo das pessoas envolvidas realmente. Isso também aconteceu em 1973? Cremos que não.

Uma certa quantidade razoável de pessoas na alameda universitária em 1973. Seguramente mais de quinze.

Desculpamos algumas dessas pessoas já com alguma idade se, quando vêem um polícia entrar na Faculdade de Letras (e entram, com frequência, seja para resolver pequenos delitos ou para tratar de desordeiros dentro da biblioteca, o que acontece com alguma recorrência), lhes vêm à cabeça memórias de 1973 e traumas não de infância mas lá perto. Desculpamos alguns mas não desculpamos todos. Assim como desculpamos alguns jovens de hoje que, quando vêem um polícia entrar na faculdade, se lembram do que os avós lhes contavam e ficam cheios de medo. Mais uma vez, desculpamos alguns mas não todos.

A última comparação que queríamos levantar, e que entendemos como de péssimo gosto, ou de limitada capacidade cognitiva de quem a faça, é entre os monumentais movimentos estudantis que se opunham a um regime que não era livre nem democrático, na década de 70, e as diminutas quantidade de pessoas que hoje se insurgem por causas pautadas por notável misturada umas com as outras (clima, capitalismo, assédio sexual, identidade de género, etc.) e cuja ignorância e iliteracia sobre as mesmas é evidente; para qualquer pessoa o verificar bastará tentar encetar diálogo com uma delas, conforme foi tentado por alguns jornalistas.

As micromanifestações de Novembro de 2022 (já agora, em Dezembro há eleições para a AE)

Não podemos em boa verdade esperar que jovens indolentes — com todo o respeito pela indolência — pouco literatos — com todo o respeito pela iliteracia — e infinitamente minoritários — com todo o respeito pelas minorias — representem “os alunos“. Não representam. Na Faculdade de Letras não há qualquer unanimidade quanto a este tipo de ações carnavalescas. Existem, como é bem sabido pelos alunos da própria instituição e fora dela, minorias de tribos politicamente comprometidas que passam a maior parte do tempo nas esplanadas da instituição a fumar charros, a faltar às aulas e a discutir marxismo (ou aquilo que elas julgam que é o marxismo). Forças políticas bem conhecidas, neste caso de extrema esquerda (mas também poderiam ser de extrema direita se o gado em questão se proporcionasse a isso) aproveitam-se do estado um pouco perdido destas almas e levam-nas para caminhos de “ativismo“ que ocupam o tempo a quem não tem mais nada a se prestar. Gostaríamos aqui de dizer “com todo respeito pelo ativismo“, mas sinceramente já lá vai tanto tempo desde que vimos um único exemplo digno e admirável do mesmo que quase já nem recordamos do que se trata. Nelson Mandela, Martin Luther King ou Mahatma Gandhi, quando eram presos, não se queixavam nem faziam um choradinho espúrio. Não é o caso destes estudantes burgueses contemporâneos. Fazem fita, fazem-se de vítimas, acusam de violência a polícia quando não existiu nenhuma e são mentirosos e desonestos, de modo geral, à partida até na própria ideologia, provavelmente.

Faculdade de Letras de Lisboa, 15 Novembro 2022, 16h15. Cerca de 25 a 30 pessoas empunham, à porta da faculdade, uma faixa a dizer “Tamen, a FLUL é nossa!“

“Os fins justificam os meios“: é sempre o que acha qualquer fanático que se julga iluminado por uma verdade secreta inacessível ao comum dos mortais. Isto sucede com os mórmones, com o Partido Nacional Renovador, com as seitas em geral, e também sucede com esta gente. A verdade é que a maioria dos alunos da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa são pessoas que querem que a Faculdade de Letras lhe dê um espaço para estudar, pensar e trabalhar e não mais do que isso. A política, como dizia Harold Bloom, faz-se lá fora, no seu tempo livre; não é dentro do espaço da universidade e das salas de aula. Se este for sequestrado por uma única inclinação ideológico/política, ainda por cima escandalosamente minoritária, estará então a efetuar-se um exercício totalitário de captura dos interesses da maior parte das pessoas pelos interesses de uma minoria que nem sequer consegue exprimir bem quais são ao certo os seus interesses.

Alguns poucos nós foram alunos de Miguel Tamen, não muitos. E podemos dizer de forma concreta e franca que de modo geral nos estamos nas tintas para Miguel Tamen, para a sua pessoa, para as amizades ou inimizades que possa ter no meio da sua faculdade, para a impressão que os alunos tenham dele, para a impressão que outros docentes tenham dele, etc. Tudo o que nos é suficiente para dizer que concordamos inteiramente com a sua posição é sabermos qual é a sua posição. Que a universidade é um espaço onde todas as posições aceitáveis na sociedade civilizada, e até algumas nas franjas da mesma, são possíveis e aceitáveis de serem discutidas, e é um espaço onde nenhuma delas se deve impor como dogma ou verdade absoluta sobre todas as outras. Foi esse o exercício de imposição de uma posição sobre as outras, e exigência de que a universidade assumisse essa posição em detrimento de outras, que alguns pobres diabos resolveram instar, pela simples razão de, e com todo o direito a fazê-lo, acharem que na sociedade de consumo em que vivemos essa era a carreira mais adequada aos seus talentos. Desejamos que tenham o sucesso que mereçam, mas fora do campus, por favor — pois o campus não é deles mas sim de todos.