“They’re not mine”, diz Isabelle, a protagonista do filme Innocents (2003), num misto de entusiasmo e incredulidade por ter encontrado em sua casa um par de luvas femininas extraordinariamente compridas.
Vídeo e ensaio de Sílvia Catarina Pereira Diogo. Revisão de João N. S. Almeida.
TABLEAU VIVANT: ISABELLE, L’INNOCENT TERRIBLE
Par instants brille, et s’allonge, et s’étale
Un spectre fait de grâce et de splendeur.
A sa rêveuse allure orientale,
Quand il atteint sa totale grandeur,
Je reconnais ma belle visiteuse:
C’est Elle! noire et pourtant lumineuse.
(Baudelaire 1972 [1857], 189).
Thaumazo é um verbo grego que significa olhar com maravilha e encanto. Não terá lançado Praxíteles um desses olhares com admiração a Afrodite quando a olhou nua, para depois reproduzi-la sob a forma da estátua que hoje vulgarmente conhecemos por Afrodite de Cnido? O episódio em que se inscreve este acto de voyeurismo do escultor é relatado pela própria deusa no momento em que, ao abeirar-se da sua imagem esculpida, comenta, transida de suspeita e pejo, a mão-de-obra praxiteliana. A cena é atribuída, ao que se sabe, a Platão Júnior (c. I a.C.) e lê-se da seguinte forma:
Paphian Cythera [Aphrodite] came through the sea to Knidos
Wishing to see her own image.
Having gazed from every angle in that conspicuous space
She cried: “Where did Praxiteles see me naked?” (apud. Lee 2015, 188).
“They’re not mine”, diz Isabelle, a protagonista do filme Innocents (2003), num misto de entusiasmo e incredulidade por ter encontrado em sua casa um par de luvas femininas extraordinariamente compridas. A virtude que a dota de curiosidade leva-a a condescender ao pedido de Mathew para visitar o seu quarto juvenil. Devidamente instalado no quarto de Isabelle, e percorrendo-o com a cadência de quem procura tornar nítido o desconhecido, Mathew é confrontado com a entrada triunfal da protagonista, majestosamente interpretada por Eva Green, anichada à porta, compondo dessa forma um dos quadros mais idílicos para quem se estarrece ante a visão de uma escultura clássica. “I’ve always wanted to make love to a Venus de Milo”, confessa Mathew, confirmando o quadro diante de si.
Não terá Isabelle disposto de um semblante contemplativo, semelhante ao de Praxíteles para a Vénus de Milo, levando a que, num transporte simultaneamente lúdico e concupiscente, pudesse convocar para si, através da pantomima, a imagem da deusa? Isabelle, l’enfant terrible, parece arrancar a deusa ao mármore onde a incrustaram, através da irreverência, da afectação e da sensibilidade dos gestos (film still 2). A coragem insuflada na inoculação desta Vénus de Milo cinematográfica sob a égide de Bernardo Bertolucci, amplamente conhecida através da versão anglo-saxónica da sua epígrafe, The Dreamers, peca, todavia, pela caquéctica da inocência que estrangula emocionalmente Isabelle ao final da cena em apreço. Ao nosso ver, a obsolescência da sua inocência vai acompanhada de uma certa fragilidade assolada pela impotência de perseguir o ritual iniciático previamente definido pela deusa do amor e pelo desfile dos braços escamoteados, que logo regeneram junto de Mathew (film still 4 e 5).
O excerto do filme em apreço define um esgotamento moral e ético que assola por completo a protagonista, Isabelle. Entrevê-se-lhe novos recortes de sensibilidade, promovidos pela decadência sensual, convocada en par da indiferença patológica ao dilema moral que é dado para reflexão no decorrer do filme: a relação incestuosa com o irmão, Théo. E a ligação que Isabelle nutre com Mathew, abcesso da sua emancipação, suscita um intervalo inconsciente no contrato social a que ela está obrigada, cuja sublimação é elevada à condição estética de tableau vivant, entretecida maquiavelicamente por Bernardo Bertolucci, não rompendo com a degradação iminente. A cena a que nos reportamos, o desfile da Vénus, parece estar ao serviço de uma estratégia de ficção para que Isabelle perca pari passu a sua equidade virtual com a deusa, muito embora paire a figura de Afrodite no corpo da protagonista e a expectativa de uma sublimação prolongada. Significa isto que o seu sentido de justiça, moral, ético e deontológico, é relegado para o plano da decadência. A sublimação é breve e degrada-se no momento em que Isabelle alcança Mathew. Em verdade, a deusa não escuda Isabelle, quando muito torna a clivagem entre ‘ideal’ e ‘decadente’ mais evidente. Mais a mais, a coreografia de Isabelle é assaltada pela presença de Théo no quarto contíguo; ela passa de um acesso de cupidez ao abatimento saturnino e ao desencantamento súbito (film still 6). O momento inspira-lhe um vago sentimento de terror que Mathew, com bonomia, tenta suavizar (film still 7). De tudo o que vimos, preservamos não só a evidência da estátua, mas também a recordação obscura da infância de Isabelle, reavivada tão somente pelo quarto imaculado que ela conserva ao abrigo da emancipação sexual. (film still 1) (Diogo 2016, 110-122).
A figura de Isabelle, a pose ecléctica, de um deliberado arcaísmo combinado com a nudez clássica, e a torsão física helenística, suscitam em nós, tal como em Mathew (film still 3), o olhar intoxicado e voyeurista para a imagem sedutora que se nos oferece. Cativa-nos para a imitação. Precipita-nos a imitá-la. Experimentámo-la, portanto. Em boa verdade, ali nada mais se contempla do que um cortejo de vaidade e de humilhação. Ecos de um matriarcado que escapam à heroína do filme, como, de resto, às matronas anódinas e emaciadas que de Isabelle fizeram modelo, disfarçadas sob a capa da especulação e do artifício impostor, representadas das mais diversas formas na sociedade, que aqui também encarnamos. Com efeito, a nossa intervenção em vídeo, de quarenta segundos não singulares, em cuja força anímica está implícita a exegese em movimento, não é mais que uma degradação última dessa ousada modulação do corpo da deusa dado à tela por Isabelle. A tentativa de restaurar à deusa um corpo que em tudo a reacende parece prolongar a dimensão mitológica e o fenómeno mitificador que lhe estão associados. Nada mais faz que depositar a deusa num imaginário mais alargado em relação àquele a que ela está normalmente associada na contingência historiográfica do período helenístico, sem contudo a desvirtuar. A aceitar-se a hipótese de propostas em movimento como a nossa, para cuja imagem de Isabelle convergem, de cujo recorte são decalcados reflexos egoístas e incendiários (no que se costura a constituição da vaidade, da flânerie maliciosa e do exibicionismo contorcionista, de um lado previsível, de outro solipsista), anuímos que o fantasma de Isabelle habita, por defeito, a sociedade hodierna e tudo (ou quase tudo) quanto converge para ela. A imitação é, porém, alheia a tudo isto que aqui se regista. Prejudica, no entanto, o ideal. Isabelle fait semblant, n’est-ce pas? Mas, não podemos ignorar que a nossa intervenção faz parte de um programa crítico de tributo ao filme e que, de resto, se ressente de vontade laudatória e devota a tudo quanto ele representa e, em especial, ao fragmento que acolhemos para homenagear.
Recordemos que o filme Innocents consagra o gesto do seu predecessor, Les Enfants Terribles (1950), filme da autoria de Jean-Pierre Melville, o qual, por sua vez, deve a inspiração à obra literária de Jean Cocteau, do mesmo nome. E hoje inspira variações da mesma natureza, como, por exemplo, o vídeo-clipe do grupo musical sul-coreano Triple H (트리플 H), 365 Fresh (2017), sobre um trio amoroso que, à revelia das convenções sociais, se lança para o espaço marginal da expressão artística, com várias cenas inspiradas na lente de Bertolucci. Desde a presença da banheira à brevidade de fotogramas cujo pano de fundo é uma cama em que o trio se aninha confortavelmente. Do sentimento geral de libertação ética e alienação fátua ao encontro latente com as autoridades policiais ao final da produção musical.
Que fazer do sujeito que, no seio da vivência rocambolesca da sua expressão artística, valendo-se pelas figuras de Élisabeth (Les Enfants Terribles), Isabelle (Innocents) e fantômette (365 Fresh, a que dá corpo Kim Hyuna), encontra nelas os seus símbolos? Que vá repousar diante do dilema moral e da impressão afectiva que em si desfecham as imitações.
Je veux bâtir pour toi, Madone, ma maîtresse,
Un autel souterrain au fond de ma détresse,
Et creuser dans le coin le plus noir de mon coeur,
Loin du désir mondain et du regard moqueur,
Une niche, d’azur et d’or tout émaillée,
Où tu te dresseras, Statue émerveillée.
(Baudelaire 1972 [1857], 195).
Bibliografia
Baudelaire, Charles. 1972 [1857]. Les Fleurs du Mal. Paris : Le Livre de Poche.
Filmografia
Les Enfants Terribles [filme]. Jean-Pierre Melville. O.G.C. França. 1950. 107 mins.
365 Fresh [MV]. Triple H (트리플 H). LOEN Entertainment. Coreia do Sul. 2017. 4.47 mins.