The Magician Longs to See: o Enquadramento Literário da Obra Visual em David Lynch

Sobre o papel da literatura na obra do cineasta e como se emparelha com as imagens. Apesar de ter origem numa formação de artes visuais, e acabando como cineasta apenas de modo acidental, o trabalho de David Lynch depende fortemente dessa dimensão literária. De acordo com a descrição que faz do seu processo criativo, o nascimento das obras cinematográficas começa com as ideias primeiro, depois o argumento, e só durante a filmagem é que o aspecto visual toma o papel principal. A escrita do enredo, composta, em grande parte, por linguagem simbólica, serve como enquadramento para os conteúdos visuais. Citam-se alguns exemplos como ilustração deste ponto, como a série de TV Twin Peaks, o filme nomeado ao Óscar Mulholland Drive, e a terceira temporada da mesma série, muito mais experimental. São também usados excertos das suas memórias e de entrevistas. Texto de Ana Sérgio. Revisão de João N.S. Almeida. Imagens: fotogramas de Twin Peaks, 1990.

Desde seus trabalhos pioneiros — como Eraserhead, de 1977, que captou primeiramente a atenção da indústria cinematográfica, e Blue Velvet de 1986, obra que o estabeleceu como cineasta possuidor de uma linguagem única e que abriu o caminho para as obras de temática americana mais conhecidas do grande público, como a muito popular série de TV de 1990, Twin Peaks — a marca mais forte de David Lynch tem sido o uso do efeito do estranhamente familiar freudiano, o unheimlich, disposto de forma exemplar através do uso de imagens surreais fortes, uma montagem cinematográfica muitas vezes quase esquizofrénica e bandas sonoras de tendência onírica, sempre presentes, baseadas no rock n’ roll, no jazz e em tradições melódicas afro-americanas. Apesar da dimensão visual parecer, de modo absolutamente decisivo, estar no centro de grande parte de seu trabalho, pois muitas sequências em seus filmes são esparsas em palavras e parecem depender da montagem perturbadora de humores e ambientes representados e das interações entre os personagens, é bom não esquecer como o uso da palavra é também central e talvez primordial em relação à imagem[1]. Podemos encontrar um exemplo numa cena na primeira temporada de Twin Peaks, onde um concierge senil diz ao personagem principal, o agente Dale Cooper, “I’m so sorry”, após este ter encontrado um beco sem saída em sua busca de detetive. A fala é dita como se se tratasse de uma manifestação de condolências, e emerge de um momento de demência da personagem do concierge que literalmente pouco ou nada tem a ver com a situação concreta do personagem principal que aí estava a ser experienciada. É verdade que a sequência envolve uma expressividade física interessante e particular por parte dos actores, mas o seu âmago parece estar contido nessa tão breve expressão verbal que ancora e dá todo o sentido à cena. Além disso, mais tarde, na obra-prima Mulholland Drive, de 2001, durante uma segunda parte caótica e mesclada, uma situação tensa é retratada entre as personagens Adam, Dianne e Rita, quando um pedido de casamento é feito, em público, com a presença da ex-namorada da noiva. É a risada sinistra do casal recém-noivado que carrega toda a tensão ao longo da cena, enquanto que as palavras são novamente esparsas, embora decisivamente poderosas e proferidas de forma magistral em espasmos curtos, a fim de aumentar a tensão, de um modo que mistura deliciosamente cinismo com comoção. Noutras obras, durante muitos momentos musicais — que são uma constante no trabalho de Lynch — como em Blue Velvet, onde o personagem de Dennis Hopper tem uma obsessão psicopática pela música de Roy Orbison “In Dreams”, ou nas performances musicais de Nicholas Cage em Wild At Heart, de 1990, o efeito de estranhamento suscitado pela inserção de uma fantasia musical na narrativa — que muito difere dos musicais clássicos, pois visa o perturbador e não o idílio — é fortemente dependente dos estados de espírito evocados pelas canções, tanto como das configurações visuais possibilitadas pelo desempenho dos actores e do trabalho da câmara. Vemos assim que Lynch não é um realizador que aparentemente dependa da literatura, à partida, mas esta tem uma dimensão velada na sua obra que está sempre presente e por vezes se torna absolutamente explícita na montagem de certas cenas, tendo também um papel fundamental subentendido ao desenvolvimento dos seus argumentos, conforme veremos a seguir.

Por muito forte e inequivocamente dominante que seja a sua base no campo sensorial — já que é evidentes a sua supremacia através da dimensão perceptiva dos efeitos visuais e auditivos num todo que inclui também elementos mais abstratos de composição de ambiente — a obra de Lynch não subsiste sem um núcleo literário; poderia eventualmente subsistir, mas o autor — apesar de ter formação especificamente em pintura e cinema — não parece passar bem sem a dimensão da palavra. Embora os enunciados verbais possam ser esparsos, como nos casos descritos acima, ou, noutros casos, poderem envolver conteúdos mais explicitamente densos, a ligação de Lynch com o campo literário é fundamental não apenas como complemento das suas realizações nos campos visual e cinematográfico, mas como seu fundamento apriorístico. Para relembrar um pouco esta sua estética literária, que também é fortemente influenciada pelo film-noir, podemos pensar na fala “Dick Laurant is dead”, de Lost Highway, de 1997, que é proferida por uma personagem desconhecida, através de um intercomunicador de porta, como uma espécie de non sequitur do enredo que serve unicamente para abrir e fechar o filme; ou, ainda, a memorável fala “no hay banda”, em Mulholland Drive, que serve de mote para um solilóquio sobre ilusionismo cinematográfico, um monólogo que, além de ser verbalmente muito intenso, também é visualmente — ou, neste caso, teatralmente — muito poderoso. São mais dois pequenos casos em que a força do aspecto literário passa quase despercebida à primeira vista, mas é fundamental para a configuração cinematográfica das cenas em questão, de modo a produzir o efeito de estranhamento que Lynch procura. Mas outras sequências literárias tanto mais explícitas como significativamente mais prolongadas podem ser encontradas em Twin Peaks — onde, aliás, a natureza novelesca da série proporciona e, na verdade, necessita de uma maior quantidade de discurso para avançar com a narrativa. Uma dessas sequências sucede quando a personagem principal, o agente Cooper, profere uma espécie de eulogia fúnebre à personagem Leland Palmer, que se encontra a desfalecer nos seus braços; é um monólogo poderoso, inspirado na tradição da palavra poética e evocativo de emoções fortes, que é curiosamente baseado no Livro Tibetano dos Mortos; e tais falas também carregam em si um poderoso efeito de estranhamento face ao contexto, já que é completamente inesperado para um detective recitar o livro.

Leland Palmer: They had me kill that girl, Theresa.

And they– They said if I didn’t give them Laura, they’d have me kill her too.

But she wouldn’t let them in? She said she’d die before she let them.

And they made me kill her.

Oh, God, have mercy on me.

What have I done? What have I done? Oh, God, I love her.

I loved her with all my heart.

My angel, forgive me.

Dale Cooper: Leland.

Leland, the time has come for you to seek the path.

Your soul has set you face to face with a clear light and you are now about to experience it in its reality, wherein all things are like the void and cloudless sky and the naked, spotless intellect is like a transparent vacuum without circumference or centre.

Leland, in this moment, know yourself and abide in that state.

Look to the light, Leland.

Find the light.

Leland Palmer: I see it.

Dale Cooper: Into the light, Leland.

Into the light.

Leland Palmer: I see her.

She’s there.

Dale Cooper: Into the light, Leland.

Leland Palmer: She’s beautiful.

Dale Cooper: Into the light.

Leland Palmer: Laura.

Dale Cooper: Don’t be afraid.[2]

O pequeno poema proferido pela personagem One-Armed Man, no início da série, é outro exemplo; esses versos assombram os eventos da série desde o início e uma parte deles dão nome ao filme de 1992, Fire Walk With Me, baseado nos eventos da série: “Through the darkness of futures past, the magician longs to see, one chance out between two worlds … fire, walk with me”. Ainda em Twin Peaks, a personagem Margaret, a log lady, sofrendo de uma espécie de loucura vidente, à maneira das profetisas, também é explicitamente literária nas suas proclamações; e quanto às famosas sequências oníricas da sala com cortinados vermelhos e soalho em vinil axadrezado — que surgem em momentos em que o plano da realidade se cruza com o fantasmático, inclusive durante sonhos das personagens — embora sejam cenas fortemente dependentes de arranjos visuais, também são inegavelmente levadas ao colo por misteriosas passagens verbais de fala em reverso, escritas como uma série de enigmáticas e oníricas associações, como neste exemplo:

Little Man: I’ve got good news. That gum you like is going to come back in style. She’s my cousin, but doesn’t she look almost exactly like Laura Palmer?

Cooper: But it is Laura Palmer. Are you Laura Palmer?

Woman: I feel like I know her, but sometimes my arms bend back.

Little Man: She’s filled with secrets. Where we’re from, the birds sing a pretty song and there’s always music in the air.[3]

Grande parte do trabalho desenvolvido na série, neste aspecto, foi transposto para o grande ecrã na longa-metragem de 1992, onde Lynch tomou parte muito mais activa no desenho de som das sequências, chegando ao ponto de sobrepor cenas na dimensão visual e na dimensão sonora, confundido tanto imagem como palavra e discurso (Chion 1995:166). Nas suas obras mais tardias, como Lost Highway e Mulholland Drive, o explicitamente literário que observámos em Twin Peaks parece ser colocado de lado e a estética verbal do film-noir, muito sintética, assume o controle: os personagens falam de um modo que é tão esparso quanto denso e indiretamente confrontador, como na cena onde o personagem de Justin Theroux confronta o cowboy, em um diálogo quase totalmente dependente de pequenos desafios de bravata:

Cowboy : A man’s attitude… a man’s attitude goes some ways. The way his life will be. Is that somethin’ you agree with?

Adam Kesher : Sure.

Cowboy : Now… did you answer cause you thought that’s what I wanted to hear, or did you think about what I said and answer cause you truly believe that to be right?

Adam Kesher : I agree with what you said, truthfully.

Cowboy : What’d I say?

Adam Kesher : Uh… that a man’s attitude determines, to a large extent, how his life will be.

Cowboy : So since you agree, you must be someone who does not care about the good life.

Um tom semelhante ocorre quando a mesma personagem enfrenta os irmãos Castigliane:

Adam Kesher : Wait a minute! What’s going on here?

[Vincenzo just stares toward Adam as if he’s not even there.]

Adam Kesher: There’s no way that girl is in my movie!

[Silence.]

Luigi Castigliane: That is the girl.

[The Castigliane brothers begin to leave. Adam stands up trembling with anger.]

Adam Kesher: Hey! That girl is not in my film!

Vincenzo Castigliane: It is no longer your film.[4]

Até mesmo as protagonistas Betty e Rita — as personagens mais cândidas do filme, pelo menos em suas iterações iniciais — interagem bastante por meio de enunciados fortes e esparsos, que, no caso delas, dão origem a uma forte paixão que constitui o principal enredo do romance da filme[5].

Betty: You don’t remember anything else?

Rita: No [she covers her eyes with her hands]

There is something…something there I can’t tell… I can’t describe it. [struggling to figure it out –

to express it] There are things there…. but I’m… here.

[Betty thinks about what Rita has said. Somehow it seems to make sense to her.]

Betty: The money. You don’t know where it came from?

Rita: Unh, unh.

Betty: When you think about them… the

money… the key … does it make you

remember anything?

[Silence.]

Rita: The money… I don’t know about the

money… the key… it makes me feel …

afraid.[6]

Este registo discursivo, curto e grosseiro, parece reminescente do estilo presente nos romances e argumentos da autoria de Raymond Chandler ou de Mickey Spillane — registo cujo exemplo em filme provavelmente mais conhecido pode ser encontrado nas locuções fortes de Humphrey Bogart em The Big Sleep (Howard Hawks, 1946) — e, de facto, parece que Lynch toma muito de emprestado a essa tradição; mas mais do que lhes dar um toque próprio que o integrasse inteiramente na continuidade de uma tradição do noir, o realizador usa esses ritmos da montagem e a construção desses ambientes cinematográficos como instrumentos para evocar a sensação de estranhamento particular que está sempre presente em sua obra (Vd. Mactaggart 2010:76, 98). Esse lirismo construído com base em frases curtas está presente não somente nos argumentos e nas locuções atribuídas às personagens, mas também nas escolhas que Lynch faz das bandas sonoras — como na lírica de ambiência sonhadora de Roy Orbison, em Blue Velvet, e nas canções de Chris Isaak em Lost Highway; isto reflecte-se não apenas nas letras das canções, mas também no tipo de composição com frases musicais breves que Lynch privilegia. Além dessa continuidade, a predilecção por um certo tipo de personagem levou inclusive a que o próprio Isaak também fosse usado como actor em Fire Walk With Me; é recorrente Lynch usar os mesmos colaboradores em diferentes funções — ou seja, cantores como actores e vice-versa. Ainda no campo da música, a temporada mais recente de Twin Peaks tem uma banda sonora que inclui clássicos românticos e melódicos das décadas de 50 e 60, como os de Otis Reading e dos Platters, que são usados ​​com um gosto nostálgico intencional, e onde mais uma vez encontramos a brevidade das frases musicais e das frases verbais das composições. Nesta temporada, aliás, as influências musicais de Lynch recebem exposição total: cada episódio termina com uma performance de algumas das bandas de rock independentes favoritas do realizador, quase todas portadoras de um registo musical e verbal onde encontramos a mesma estética. Por último, também em Twin Peaks, e noutras obras, a música de jazz instrumental da autoria do colaborador de longa data Angelo Badalamenti tem o mesmo papel que essa verbalização sintética e pontuada da tradição do film-noir; tanto as suas frases fortes e grosseiras como o jazz semi-onírico de Badalamenti são recursos usados da mesma forma para criar ambientes e pautar tensões entre os personagens.

Muito antes desta fase, já madura, a tendência do autor para uma estética visual alimentada pela palavra podia já ser encontrada nas suas primeiras curtas-metragens, como The Alphabet, de 1968, e The Grandmother, de 1970. No primeiro filme, a conexão da montagem visual com a linguagem verbal e a música é bastante clara: uma voz feminina canta o alfabeto numa canção de embalar, destacando tanto a importância das palavras quanto o poder fascinante e hipnótico das melodias simples, tão fundamentais para muitas sequências da obra do autor. No segundo filme, o interesse de Lynch nos sentimentos perdidos do carinho maternal encontra um ritmo adequado através de locuções tão curtas como significativas, proferidas pelas personagens, que configuram o romance familiar representado no filme. Estas e outras curtas-metragens do início da carreira de Lynch mostram não apenas várias recorrências temáticas que ocorrerão ao longo de sua carreira, mas também a estrutura operacional que dominará a maioria de suas obras posteriores: uma estrutura recorrentemente constituída por enunciados literários curtos mas densos que dão âncora aos seus arranjos visuais fortes e misteriosos, sublinhados pelas sonhadoras composições musicais que ajudam a criar esses ambientes à sua imagem.

Mas é só mais tarde, depois de Eraserhead, com obras mais centradas no enredo narrativo como Blue Velvet e Twin Peaks — este último escrito em parceria com Mark Frost — que a escrita do argumento se torna mais crucial nas criações do autor, e que a dependência dos arranjos visuais em relação às palavras é mais evidente. A partir deste ponto, é a escrita do argumento que irá fundamentar e enquadrar a maioria das obras, que se tornam não tanto baseadas na arte visual abstrata aplicada à produção cinematográfica, como nas primeiras curtas e também um pouco em Eraserhead, mas antes mais baseadas na narrativa clássica herdada da tradição do romance do séc. XIX, amplamente utilizada tanto em filmes populares e de indústria como no cinema de autor e de arte. Apesar disso, no trabalho de Lynch continuará a haver espaço para uma grande quantidade de improvisação no set, tanto em termos de trabalho de câmara, configurações visuais e interações entre os actores. Mesmo assim, alguns aspectos improvisados, durante ou após as filmagens, ainda estão relacionados a locuções verbais: por exemplo, durante as filmagens do episódio piloto de Twin Peaks, a descoberta do assassino Bob por Lynch é inspirada por uma observação fora de câmara, quando o então técnico Frank Silva, mais tarde transformado em actor, é avisado para não se trancar si mesmo dentro da sala (Lynch e McKenna, 2018: 686). Além disso, a música do genérico da série, misteriosa e memorável, da autoria de Angelo Badalamenti, é composta enquanto Lynch dá pistas verbais ao compositor, em directo — pistas que podem acabar por ser fortemente visuais, mas são ainda assim apresentadas como discurso — para este reproduzir, ao piano, esses ambientes sonoros de acordo com a descrição de emoções feita pelo realizador; essas pistas tendem a ser não tanto observações concretas e objetivas mas sim sugestões abstratas e evocativas, o que é semelhante a muitos registos de discurso usados ​​pelas personagens do autor[7]. A comunicação com os actores também ocorre da mesma forma, já que Lynch costuma usar descrições vagas e por vezes até concretamente distantes dos efeitos pretendidos, que servem não para indicar diretamente mas sim para persuadir os actores a entrarem na mentalidade desejada, como quando instrui Laura Harring para descer a colina “like a broken doll” ou quando sugere que Mathew Lillard, na terceira temporada de I, interprete seu personagem de forma “more blue”. Voltando aos argumentos, conforme afirmado pelo próprio realizador a propósito da temporada final de Twin Peaks, a escrita destes é a parte mais demorada do processo criativo, mais do que a própria filmagem, já que Lynch trabalha fora do sistema dos grandes estúdios e não depende de alguns preciosos instrumentos que a indústria cinematográfica possui, como o uso de script-doctors e outros tipos de ajuda externa. Os seus argumentos contêm não só a sequência narrativa feita de cenas e diálogos — este sempre sujeito a novos improvisos, como também acontece aliás com os filmes em geral — mas também a configuração dos ambientes emocionais requeridos para as cenas em específico. Portanto, a escrita envolve mais do que apenas o desenvolvimento da narrativa, já que também desempenha um papel fulcral na evocação dos ambientes abstratos utilizados que, posteriormente, na filmagem, são preenchidos com figuras e eventos da vida real.

Em jeito de conclusão, poderemos dizer que a formação em artes visuais de Lynch provavelmente desempenha um papel maior na constituição de base de seu trabalho do que propriamente o enquadramento literário, mas essa dimensão visual não persistiria sem os fortes componentes literários mencionados acima, ou pelo menos não nas formas actuais e mais commumente usadas por Lynch, com excepção de algumas obras mais explicitamente abstratas. Mas mesmo numa configuração cénica e narrativa obviamente tendente para o absurdo, como na minissérie da web Rabbits, de 2002 — filmagem que também foi usada no filme Inland Empire de 2006 — as palavras servem tanto para conjurar humores quanto para enquadrar devidamente o cenário maeterlinckiano ali representado. A fórmula-tipo de Lynch, hoje, funciona normalmente assim: atinge o puramente cinematográfico primeiramente através do meio verbal, que serve para enquadrar, evocar ou comunicar estados de espírito, o que ultrapassa o meio da arte visual pura e exclusivista, ancorando-se firmemente na tradição da arte cinematográfica como um todo, juntando visuais, sons e palavras de uma forma onde o visual é inevitavelmente primário, mas onde tanto o som quanto o literário têm um papel fundamental na criação de sua obra — o que coloca Lynch fiel e firmemente na tradição do cinema moderno. Mas isto lembra-nos que este autor, tendo tido raiz na arte visual pura, acaba por ir parar ao literário precisamente também porque a tradição do cinema como um todo, em que trabalha, está mais ligada, em termos de raízes, à literatura, e menos à pintura, ao contrário do que uma leitura que visasse apenas a análise dos meios utilizados pudesse supor[8].

Uma nota final: a fala “the magician longs to see” do poema retrata com precisão esse processo de enquadramento visual e evocação da parte de Lynch por meio de palavras, uma vez que a maioria das tradições que envolvem conjurações mágicas fazem-nas através de enunciados verbais, possibilitando a desejada transcendência do plano físico que se segue. Isso deveria ser, em primeiro lugar, óbvio até mesmo para o fã mais efebo de Lynch: a presença do literário é sempre sentida, mas não a encontramos necessariamente objectivada. Neste ensaio, tentei mostrar um breve esboço de como Lynch normalmente fundamenta os seus arranjos visuais em sementes verbais na esperança de que um estudo mais aprofundado desenvolva plenamente essa noção, a fim de chegar a um ponto em que a dimensão literária das obras do autor seja, ao nível crítico, totalmente desenterrada e objetivada e fique assim equiparada ao visual — este que é, dada a forma do próprio meio do cinema, já explicitamente objectivo em primeiríssimo lugar.

Bibliografia:

Lynch, David, and McKenna, Kristine, Room to Dream, Random House, 2018.

Parciack, Ronie, “The World As Illusion: Rediscovering Mulholland Dr. And Lost Highway Through Indian Philosophy”, in Devlin, W. J., & Biderman, S. (Eds.). (2011). The philosophy of David Lynch. University Press of Kentucky.

Chion, Michel. David Lynch. BFI Pub, 1995.

Mactaggart, Allister. The Film Paintings of David Lynch: Challenging Film Theory. Intellect, 2010.

Nochimson, Martha. David Lynch Swerves: Uncertainty from Lost Highway to Inland Empire. University of Texas Press, 2013.

Olson, Greg. David Lynch: beautiful dark. Scarecrow Press, 2008.

Filmography:

Lynch, David, Twin Peaks, ABC, 1991.

Idem, Lost Highway, October Films, 1997.

Idem, Mulholland Drive, Universal Pictures, 2001.

Idem, Twin Peaks: The Return, Showtime Networks, 2017.

Notas:

  1. Sobre este aspecto, um detalhe biográfico, referido por Greg Olson: já durante a sua fase de formação enquanto pintor, Lynch tinha por habito etiquetar as figuras presentes nas suas pinturas com pequenas palavras ou frases (Olson 2008:50).

  2. Id, “Arbitrary Law”, in Twin Peaks, ABC, 1991

  3. Id, “Zen, or the Skill to Catch a Killer”, in Twin Peaks, ABC, 1990

  4. Lynch, David, Mulholland Drive, Universal Pictures, 2001

  5. Este ponto é desenvolvido adicionalmente e com bastante mais pormenor noutra literatura, dado que é particularmente em Mulholland Drive que Lynch evidencia uma mestria sobre a relação entre palavra escrita, palavra dita e impacto visual (Olson 2008:590, 599).

  6. Id, Ibid.

  7. A descrição, sobremaneira cómica, encontra-se aqui: https://youtu.be/d_rbEthOdf0

  8. Outro ponto de vista é levantado por Mactaggart, que argumenta que algumas obras literário-fílmicas da segunda metade do séc. XX modificaram o paradigma anterior, mais ligado à arte visual (Mactaggart 2010:97).