Texto de Nuno Lopes Margalha, em parceria com o Instituto Português de Relojoaria. Leia este texto e divirta-se muito a lê-lo. Quando terminar envie um e-mail a pedir mais ao editor. Possivelmente não vamos escrever mais porque somos pessoas muito ocupadas. Leia cada uma das letras como quem observa a mais linda das paramécias ao microscópio. Reflita sobre a nossa intenção na escolha de cada uma das palavras. Encare o conjunto de frases como quem encara um estereograma.
A escrita de um texto é um processo complexo que envolve múltiplas habilidades e competências, desenvolvidas ao longo de vários anos. Inicialmente, é fundamental adquirir uma motricidade fina apurada, essencial para não falhar as teclas do teclado. Esta motricidade é desenvolvida desde cedo, através de atividades lúdicas e educativas, como empilhar cubos num jardim de infância ou praticar o picar linhas numa folha com um pico, uma técnica pedagógica ancestral. Além disso, o treino com ferramentas como lápis, canetas e pincéis contribui significativamente para o aperfeiçoamento dessa capacidade.
Com um domínio da motricidade fina bem estabelecido, é crucial compreender as regras da gramática e áreas relacionadas. Estabelecidas as capacidades mecânicas tanto da motricidade como da gramática sobram as mais mentais, como a inteligência e criatividade. A primeira pode ser inata ou produzir-se ao longo dos anos, com ausência de empecilhos emocionais, ou com bastante treino. A segunda, a criatividade, resulta acima de tudo de uma boa capacidade para fugir ao aborrecimento, principalmente através da capacidade para inventar histórias, aventuras, praticando uma espécie de sonho acordado. Esta fuga ao aborrecimento cria também capacidade para resistir à frustração, só por si uma das capacidades mais importantes para qualquer escritor de textos. Textos como estes resultam portanto de vários anos de treino, que devem ter início à nascença ou até talvez antes disso. Agora que compreende o valor destas palavras, esperamos que envie muitos e-mails a pedir mais textos. Assim que o Editor os receber, vai pedir-nos para escrevermos mais. Nós vamos escrever menos, mas vamos passar a cobrar mais. Temos o editor em muito boa conta, e sabemos que vai imediatamente perceber a melhor estratégia: passar a entregar os textos individualmente a cada um dos leitores, em vez dos entregar a um público alargado de forma gratuita. Infelizmente, como somos pessoas muito ocupadas, não vamos mesmo produzir muitos textos, apenas alguns, naturalmente sempre menos do que o necessário para satisfazer a elevada procura. Entre todas as coisas que temos para fazer vamos, ainda assim, encontrar algum tempo para criar a empresa Textos, S.A. Esta infeliz situação vai lamentavelmente criar a necessidade de se organizarem listas de espera e com o aumento das listas de espera, é expectável que surjam textos de contrafacção. Estes serão muito semelhantes esteticamente, mas ficarão muito aquém da qualidade dos originais. Os afortunados que conseguem receber os textos originais, vão gabar-se de os ter na sua posse. A qualidade dos textos vai mesmo misturar-se com a sua própria personalidade, espera-se que a gabarolice inunde os círculos de amigos, de familiares, todas as redes sociais e, enfim, todas as possíveis formas de expressão. Em simultâneo, vão ser organizados eventos com acesso restrito, apenas por convite. Nestes eventos os textos vão estar expostos mas não vão poder ser lidos na totalidade. Serão organizadas feiras mundiais com dias específicos para imprensa especializada e outros para o público, na qual a Textos, S.A. estará presente. Serão criadas revistas sobre o tema, grupos de fãs que se encontram em vários países e onde serão feitos discursos e jantares sobre os textos que só alguns dos presentes leram. Todo este movimento, inevitável, vai aumentar as listas de espera. É natural, por esta altura, que o valor dos textos originais inicie uma subida sem precedentes. Como consequência vai ser criado um aumento dos textos de contrafação. Esta será uma dura realidade que terá de ser ignorada pela Textos, S.A., pois será impossível combater e, na verdade, até indesejável. Os detentores de textos originais vão querer curar as suas colecções, manter apenas os textos que sejam consonantes com o tema da sua colecção, os restantes serão excluídos. Mas tendo em conta a elevada valorização, a exclusão vai consistir numa venda por um preço de mercado. Por essa altura, vamos criar campanhas para mostrar como os textos da Textos, S.A. são tão preciosos e como não devem ser vendidos em mercados paralelos. Vão surgir slogans como “Nunca somos verdadeiramente donos de um texto, apenas o guardamos para os nossos filhos”. Se não funcionar vamos passar a criar listas negras para aqueles que vendem os seus textos. Como será de esperar, nada disto vai resultar e o mercado paralelo vai crescer. Por essa altura vão até surgir leilões onde os textos vão atingir valores nunca antes vistos, especialmente os que foram comprados por pessoas famosas que já morreram. Estamos a falar de vários milhões. Como por essa altura a Textos, S.A. vai ser uma empresa bastante abastada, vai comprar os seus próprios textos nesses leilões, mas sempre em segredo. Isso será não apenas um excelente negócio, como vai permitir o aumento dos textos no mercado paralelo. Como o mercado paralelo não vai parar de crescer, a Textos, S.A. vai passar, também, a comprar os seus próprios textos e a guardá-los nos cofres da empresa. Quando todos os cofres estiverem bem recheados vai começar a vender os seus textos em segunda mão, por um valor equivalente ao do mercado paralelo, talvez até um pouco mais alto. Só que não lhes vamos chamar textos em segunda mão, vamos chamar-lhes: textos vintage certificados. Passamos a ser então os produtores de textos novos com longuíssimas filas de espera a preços normais, e ao mesmo tempo vendedores de textos originais vintage certificados, por valores muito superiores ao inicial. Quando chegarmos a este ponto vamos escrever um texto, possivelmente um dos últimos, para uma revista muito reputada, na qual vamos denunciar todo este intrincado esquema, só que em vez de usarmos a palavra “texto”, vamos usar a palavra “relógio”. Por isso leia este texto enquanto pode, divirta-se muito a lê-lo, depois envie um e-mail ao editor a pedir mais, porque, sinceramente, temos mais que fazer.