A Burguesia Racista Saiu à Rua

Paulo Henrique Carvalho

No clima político atual, no Ocidente, observa-se a extraordinária e lamentável situação em que eventos de natureza inócua dão origem a explosões de neurose coletiva que, subsequentemente, resultam em lavagem pública de consciência e de face, em geral representadas por manifestações de rua. No passado fim-de-semana, fomos confrontados com mais um exemplo disso.

Ao longo da história recente da democracia portuguesa — um regime com cinquenta anos de existência — houve dezenas de operações das forças da lei em que, por questões logísticas ou por pura necessidade operacional de segurança, pessoas foram tratadas de forma tão sumária como os animais quando são organizados em grupo para um determinado fim. Ora, essas pessoas foram obrigadas a dispor-se em determinado arranjo, ora foram evacuadas de áreas com mais ou menos força, ora foram encostadas a paredes, carros ou até mesmo ao chão, de modo a serem pacificamente revistadas pelos agentes de autoridade. Qualquer pessoa sensata sabe que estas coisas acontecem, que são excecionais, e que, esperamos, têm justificação procedimental dentro da lógica da segurança interna.

De um modo geral, Portugal não é conhecido — e isto é admitido até pelas massas mais suscetíveis de se indignarem com tais ações — como um Estado de excessos policiais. A percepção pública é a de que a relativa pacatez do país não suscita grandes demonstrações de força policial, e que, comparativamente, em países como a Inglaterra, os Estados Unidos da América, ou até na América Latina, as situações são muito mais severas e exigentes neste campo.

O que se passou, então, numa revista policial, que de inédita não tinha nada, na rua do Benformoso, em Lisboa, há algumas semanas?

O que se passou foi que a população visada tinha uma cor diferente. E isto gerou a indignação performativa e moralista de uma classe muito curiosa: as esquerdas que tratam as minorias como animais de estimação, que veem as pessoas, fundamentalmente, com base na cor da pele, e que alteram os seus critérios conforme o estatuto dessas pessoas na escala de vitimologia — uma escala à qual reduzem tudo o que as rodeia. Este é um comportamento racista execrável.

Nunca, em qualquer outra rusga — e são muitas, particularmente em bairros com problemas de criminalidade, onde vivem pessoas de todas as cores, seja no Porto, Lisboa ou Setúbal — se assistiu a uma descrição de tais operações como sendo exercícios de discriminação racial. Milhares de pessoas já foram encostadas a paredes ou carros em operações stop, em eventos desportivos ou em controles de segurança de outros tipos como em discotecas e zonas de lazer nocturno. Nunca, até agora, o breve ou prolongado incómodo a que essas pessoas foram sujeitas pelas autoridades gerou o mínimo protesto ou manifestação pública. A indignação surgiu apenas quando um grupo de pessoas de cor diferente foi submetido a uma revista policial.

Un employé du gouvernement sortant de chez lui, Jean-Baptiste Debre, 1834.

Mas por que razão isto aconteceu?

A explicação pode ser colocada de forma muito direta, representando uma realidade que é, ao mesmo tempo, asquerosa e elucidativa: a atitude das esquerdas face a grupos de pessoas de cor diferente é a atitude de quem as vê como animaizinhos — e não são uns animaizinhos quaisquer: são, particularmente, os seus especiais animaizinhos de estimação. Para este tipo de burguês indignado, não haveria motivo para protestar se vissem um grupo de tratadores a alinhar animais de criação contra a cerca da quinta, seja por razões logísticas ou sanitárias. No entanto, a mesma situação com os seus próprios animais de estimação — as suas “minorias étnicas” — é inconcebível. Ninguém suportaria ver os seus cães ou gatos tratados com dureza por terceiros, empurrados contra a cerca.

Assim, se é legítimo para esta gente ver pessoas comuns, em determinadas situações, tratadas como animais — em gestão de multidões, concertos, grandes eventos, evacuações de emergência, situações hospitalares ou escolares — já não é legítimo, para essas esquerdas racistas, ver os seus “animais de estimação” — as minorias étnicas — tratados da mesma forma. Esta é a única diferença.

A realidade, contudo, desmente a bolha protegida em que vive esta esquerda burguesa. Esta mesma esquerda, que passeia pela Mouraria ou pelo Martim Moniz para comprar caril, e que considera os bairros multiétnicos “muito típicos”, certamente ficou surpresa quando, não mais do que um dia após a manifestação, se noticiou uma rixa entre gangues com sete feridos (https://www.dn.pt/sociedade/rixa-entre-estrangeiros-na-rua-do-benformoso-provoca-sete-feridos) na zona da rusga. Será possível um exemplo mais flagrante de como estas elites estão desconectadas das preocupações da maioria da população, incluindo dos próprios imigrantes que vivem nessas zonas?

A propaganda dessas elites protegidas não alcança as grandes massas. Sondagens feitas logo após a operação confirmam que a maioria da população portuguesa não vê com estranheza a realização deste tipo de operações nem considera que a escolha da rua do Benformoso, em Lisboa, constitua um ato de “racismo” (https://observador.pt/2025/01/11/maioria-concorda-com-operacao-da-psp-no-martim-moniz-revela-sondagem/).

Agência Lusa.

Se desenharmos o arco neurótico em que o projeto progressista frequentemente se afunda, encontramos nestas esquerdas de hoje o mais exemplar tipo de racismo. Se, numa sociedade hipotética onde ainda existissem distinções civis significativas baseadas na raça — como ocorre, por exemplo, na Índia — um grupo de pessoas de casta inferior fosse revistado, maltratado e espancado, os racistas achariam isso legítimo, pois cidadãos de cor diferente merecem ser tratados de forma diferente. Hoje, no entanto, um grupo de cidadãos de cor diferente é revistado, como qualquer outro grupo, e os racistas exigem que não o seja: de modo análogo, exigem que sejam tratados de forma distinta do cidadão comum.

É nesta contradição grotesca que se revela o racismo de velha guarda desta esquerda burguesa, elitista e conservadora, habitante de um paradoxo mental e de costumes, vivendo suas vidas de classe média, bem protegidas, e longe das realidades que pretendem, falsamente, defender. São os herdeiros diretos dos supremacistas raciais e dos mercadores de escravos, aqueles que tratam o corpo etnicamente distinto como mercadoria. Se, no passado, esta mercadoria era vendida para a escravidão, hoje estes corpos são usados e trocados como moeda de vitimização, para a consolidação e beatificação da mentira que sustenta a vida desta esquerda.

Todos os que participaram nesta manifestação racista e burguesa — uma manifestação de donos de animais — devem sentir vergonha. Todos, sem exceção. Mesmo aqueles que, por ingenuidade, não percebem o logro em que estão a incorrer. Já têm idade para ter juízo, e para saberem que o que defendem é, na verdade, uma grande hipocrisia.