A Falácia de “O Lado Errado da História“

Viceja no discurso público actual uma expressão extraordinariamente sectária quer a nível coloquial quer a nível filosófico: o “lado certo” e o “lado errado” da história. A primeira vez que alguns de nós se recordam de a ouvir com clareza e despudor atirada por um líder político contra os seus adversários foi pela boca de Barack Obama, algures durante os seus mandatos como presidente dos Estados Unidos, entre 2008 e 2016. Não é o único a proferi-la, sendo a expressão popular a partir de certos períodos do século XX, e estando em uso crescente desde então. É mais prefrerida entre políticos progressistas do que entre nacionalistas e conservadores, embora também se encontrem casos do seu uso nestes — talvez por mimese dos primeiros. E pode parecer, à primeira vista, para a pessoa comum, simultaneamente um adágio que tem o seu sentido, dado a facilidade em reconhecer a existência universal de conceitos como o bem e o mal, mas,por outro lado, um enunciado algo abusivo quanto à aplicação dessas mesmas categorias à história e aos seus actores de forma sistemática. Vejamos como.

Em primeiro lugar, várias condições são imprescindíveis para achar que tal expressão possa ter o mínimo de relevância e credibilidade: primeiro, é preciso crer em tal coisa como “a história” não só como um conceito minimamente correspondente a algo de concreto, mas também como um processo; depois, é preciso crer que esse processo não é apenas arbitrário ou aleatório mas representa um devir que em si mesmo é “progressivo”; e depois é preciso crer em tais coisas como o “bem”  e o “mal”, o “certo” e o “errado”, aplicadas a esse mesmo processo ou ao sentido que o interlocutor está a dar ao mesmo.

Em segundo, ao contrário do que se possa pensar, nem sempre, nem em todas as culturas, se achou que o tempo tem um “progresso”, ou sequer que tem um princípio e um fim — na cosmogonia aristotélica isso não existe — e, portanto, que exista tal coisa como uma “história” enquanto processo de auto-melhoramento constante. A origem moderna da ideia de um “progresso” na história pode ser atribuída ao filósofo Hegel e à sua fórmula dialéctica de tese-antítese-síntese, como um processo transversal a toda a vida que nos proporciona um melhoramento e uma evolução das coisas humanas. Também a Comte, ligeiramente mais tardio, se pode atribuir a popularização entre os eruditos de uma certa noção de história como rpocesso de melhoramento da acção e do intelecto humano. Todos estes conceitos são filhos do iluminismo, e todo aquele que os invoca está a falar na mesma tradição. Por último, Karl Marx dá a essa noção um sentido absolutamente materialista e económico, que não é necessariamente aquele que domina a maior parte dos actores que hoje invocam o conceito. Não deixa de ser certo que onde encontremos um progressista, um descendente do iluminismo, ou um marxista em específico, encontaremos muito provavelmente alguém familiarizado e enamorado do conceito dos “lados certos” e dos “lados errados” da história.

No entanto, o uso concreto do termo é crescente somente a partir da segunda metade do século vinte, com poucas ocorrências antes. Supõe-se que possa ser encontrado de forma críptica noutros enunciados, ou associado a contextos completamente diferentes. Certo é que a sua popularização em grande escala parece recente.

Autores modernos, tanto conservadores como progressistas, deixam-se capturar por esta fé de modos diferentes, como podemos observar nos casos de Obama, um natural produto do modo de pensar progressita, mas também de Ben Shapiro, conservador contemporâneo, que não tem pejo em convocá-lo para o título de um dos seus livros. Se para o conservador a ideia de um progresso advém provavelmente de uma teleologia de inspiração divina, para o progressista o processo faz parte das leis naturais. As duas coisas misturam-se e, neste início de novo milénio, voltam a encontrar-se, depois da separação artificial operada no advento do iluminismo, com a ideia de que existia uma teleologia metafísica, supersticiosa, infundada, não empírica, derivada do divino enqunato mitologia, e outra teleologia secular, empírica, científica, sistematizável e redutível a unidades mínimas. Hoje, são duas saloiadas quase idênticas.

Em conclusão, nada há de por si só errado em apontar um lado certo e um lado errado da história, mas convém não fingir ou não assumir ou não presumir que se trata de um conceito universal, objectivo e inquestionável, e que não tem uma origem cultural — e histórica — precisa. Não existe, por si só, nenhum “lado errado” nem “lado certo” da história, nem existe por si só um “progresso” na história, nem existe, por si só, uma “história” nesse sentido. O que existe, de forma mais ou menos universal mas não necessariamente objectiva, são os conceitos do bem e do mal, transversais a todas as culturas. Nalgumas, o que se entende objectivamente por tal coisa pode ser exactamente o oposto do que se entende noutras. E a aplicação desse binómio do bem e do mal ao vago, hipotético e completamente determinado conceito de “história” é tudo menos objectiva. A conversa do “lado certo” e do “lado errado” da história resume-se, assim, a uma mera retórica populista e demagoga que só não é reconhecida como tal porque já nos habituámos à mesma.