Resumo: José Saramago, na sua obra O Homem Duplicado, aborda o tema da máscara, através de vários motivos, ao mesmo tempo que conta a história de Tertuliano Máximo Afonso, um modesto professor do ensino secundário, que, encontrando um duplo ou sósia seu na figura de António Claro, um ator de cinema, dá início a uma série de investigações conturbadas que culminarão num desfecho trágico. O presente artigo irá abordar a presença do tema da máscara na obra de José Saramago, O Homem Duplicado, sob três perspetivas, sendo elas a máscara em relação ao nome, a máscara como disfarce e a máscara social, refletindo sobre o sorriso. O mundo é um lugar repleto de artifícios e este artigo pretende mostrar como o ser humano recorre a certos adornos para disfarçar a estranheza que sente e a dificuldade em conviver com o seu semelhante, deixando para segundo plano a comunicação direta, embrenhando-se, de resto, numa teia enganosa e falsa.Texto de Joana da Silva Fernandes Palha (https://www.cienciavitae.pt/portal/361D-45FB-104D). Revisão de Sílvia Pereira Diogo. Palavras-Chave: José Saramago; Máscara; O Homem Duplicado.
Abstract: José Saramago, in his book, O Homem Duplicado, addresses the theme of the mask, through various motives, at the same time that tells the story of Tertuliano Máximo Afonso, a modest high school teacher, who found a double or a doppelganger of himself in the figure of António Claro, a film actor, and begins a series of troubled investigations that will culminate in a tragic outcome. The present paper presented will address the presence of the theme of the mask in José Saramago’s work, O Homem Duplicado, from three perspectives, the mask in relation to the name, the mask as a disguise and the social mask, reflecting on the smile. The world is a place full of artifice and this paper intends to show how the human being uses certain adornments to disguise the strangeness he feels and the difficulty in living with his fellow man, leaving direct communication to the background and getting deeper and more deeper in a deceptive and false web. Key-Words: José Saramago; Mask; O Homem Duplicado.
A máscara significa um disfarce, uma dissimulação, uma falsa aparência e também uma fisionomia assumida pelo rosto numa determinada situação — podendo ser usada no sentido real, como é o caso do disfarce, ou no sentido figurado, sendo disso alguns exemplos os casos sociais do uso do nome e do sorriso. De forma geral podemos dizer que a origem da máscara na nossa cultura remonta ao período clássico, nomeadamente ao teatro da Grécia Antiga, sendo mais tarde adotada pelo teatro da civilização romana, com os seus géneros da comédia e da tragédia, onde figura como acessório. A máscara começa a ser utilizada nas festas dionisíacas, como objeto ritualístico, sendo só mais tarde inserida no teatro como acessório ou item de uso útil teatral.
De um lado pode o conceito de máscara associar-se, de um modo vago, a uma ideia de permanência, tendo por escudeira a herança da Grécia e Roma Antigas, de outro, a máscara pode, em sentido figurado, ser vista como um esconderijo, não só da pessoa, mas também do que ela pretende representar. Considerando isto, é notório que o significado que a Antiguidade pretendeu dar ao conceito de máscara possa de alguma forma perdurar até aos dias de hoje, no quotidiano da sociedade moderna, sob as mais diversas formas. Mantém-se a máscara solidamente como um artifício de distorção ou de obliteração total da identidade, sendo significativos esses papéis no contexto da festa dionisíaca e na representação do drama.
A literatura é uma das principais fontes em que a máscara, para além de tema de variados contos, romances e peças, é usada como símbolo da assunção duma identidade diferente da original ou, em alternativa, como símbolo do esconder dessa mesma identidade, ambas formas tendentes a ver na máscara a consubstanciação do outro que o esconderijo que ela supõe vem reforçar. O tema da máscara vem, por isso, trazer fundamento para análise porque é ao mesmo tempo interessante e fascinante, tanto pelos seus motivos mais suaves e alegres, bem como pelos mais obscuros e assombrosos, como veremos adiante.
O nome como máscara em O Homem Duplicado
Tertuliano Máximo Afonso, o protagonista do romance O Homem Duplicado, é um ser humano insatisfeito com a sua existência e com o seu quotidiano. Ele considera-se a incarnação da mediocridade, estado de espírito que o faz cair numa depressão que apelida de marasmo, pois a sua vida prossegue num estado de estagnação. Tal estado problemático do protagonista tem início com o próprio nome, Tertuliano: é um nome incomum que lhe provoca um sentimento de sofrimento e angústia, ao ponto de em algumas situações sociais Tertuliano usar de todas as suas forças para o esconder, mascarando-se com os seus segundos nomes. A personagem tem uma tal aversão ao nome, que resvala para a expressão física de dor, pois parece que até o próprio corpo da personagem, nomeadamente as articulações, se retraem aquando da necessidade de assinar o nome de batismo, formando um pensamento justificatório para tal atitude, como se nota no excerto seguinte:
Traçada após um instante de hesitação, a assinatura deixou ver apenas as duas últimas palavras, Máximo Afonso, sem o Tertuliano, mas, como quem havia decidido esclarecer por adiantamento um facto que poderia vir a ser motivo de controvérsia, o cliente, ao mesmo tempo que as escrevia, murmurou, Assim é mais rápido.[1]
Logo aqui se nota uma rejeição do protagonista em relação à sua identidade de origem, na qual não se reconhece.
A utilização da máscara em relação ao nome, isto é, o processo de mascarar o nome próprio, tem mais uma contribuição, desta vez feita pelo funcionário da loja de aluguer de vídeos à qual a personagem principal se dirige: mesmo sabendo o primeiro nome do protagonista, através do seu documento de identificação, o funcionário deixa-se conduzir pela assinatura do professor como maneira de se redimir da indelicadeza que comete ao tratar o cliente, em outra ocasião, pelo seu primeiro nome. O funcionário interioriza o sentimento de que “este cliente, a quem não devo esquecer-me de tratar sempre por senhor Máximo Afonso”[2] irá regressar se o tratamento no momento da saudação para o cumprimentar incluir esse agradável abafamento do nome próprio.
O senso comum, que é interveniente no romance quase como personagem, através de uma espécie de monólogo interior que o protagonista trava com ele, também alude ao nome do protagonista, ao mostrar a Tertuliano, como se de o conselho de um amigo se tratasse, ou de uma voz interior impulsionada pelo fluxo do subconsciente, aliás tipicamente saramaguiano, as vantagens de ser ator — como o seu duplo, António Claro — referindo-se, então, ao nome do professor como um alvo a abater, se algum dia manifestasse a vontade de seguir uma carreira na arte da representação.
obrigar-te-iam a mudar de nome, nenhum ator que se preze ousaria apresentar-se em público com esse ridículo Tertuliano, não terias outro remédio que adotar um pseudónimo bonito, ou talvez, pensando melhor, não fosse necessário, Máximo Afonso não estaria mal, vai pensando nisso.[3]
Além da máscara como rampa de lançamento para se metamorfosear nas personagens que podia vir a desempenhar, como a certa altura se torna evidente no romance, o protagonista, ao seguir o conselho do senso comum, teria ainda de se servir de mais um artifício para camuflar o seu nome real; mesmo recorrendo aos seus outros dois nomes, Máximo Afonso, Tertuliano passaria, gradualmente, do estado de marasmo para a sua total perda de identidade, aniquilando o seu ser, culminando num ponto em que permaneceria preso nos seus próprios artefactos carnavalescos, de que a barba postiça que veremos adiante é um exemplo.
António Claro, o duplo encontrado por Tertuliano Máximo Afonso, também usa do artificio da máscara em relação ao nome, pois o ator parece adotar o nome artístico de Daniel Santa-Clara a certa altura no romance; no entanto, o ator, para criar o pseudónimo, serve-se do seu apelido, modificando só o género da palavra. Mais uma vez, e mesmo sem a problemática tão incisiva da aversão ao nome próprio, está presente a necessidade da escapatória ao mundo real e a criação de uma nova identidade.
Daniel Santa-Clara, em rigor, não existe, é uma sombra, um títere, um vulto variável que se agita e fala dentro de uma cassete de vídeo e que regressa ao silêncio e à imobilidade quando acaba o papel que lhe ensinaram.[4]
O objetivo da máscara, já aquando da sua origem na representação teatral clássica, parece ter sido, entre outras coisas, o de estabelecer a diferença entre o ator e a personagem, oferecendo uma nova identidade recebida de modo inteligível pelo espetador. Este detalhe é de alguma importância para o que vamos intuir de pronto. Ora, podemos então concluir, na senda do que acabámos de dizer, com o reforço do espetador que converte em reconhecida identidade o fantasma que está a ser representado em palco, que as duas personagens de O Homem Duplicado, Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, à sua própria e distinta maneira, e sob os mais variados motivos, realizam cada qual uma ação em muitos aspectos semelhante à do outro, usando, à semelhança do que é feito na Antiguidade, a sociedade no seu todo como principal espetador dessa mudança.
O disfarce como máscara

O protagonista, Tertuliano Máximo Afonso, bem como o seu duplo António Claro, recorrem inúmeras vezes ao motivo do disfarce ao longo do romance, tanto como proteção dos seus sujeitos em relação à sociedade — esta a forma mais recorrente ao longo da trama — como também enquanto modo de revelarem traços da sua própria identidade, constituindo-se assim em ambos os casos uma performatividade dramática de auto-descoberta.
Tertuliano, ao fazer a descoberta do seu duplo, logo no início da obra, é levado pelo seu inconsciente a desenhar na sua cara um traço que confirma que o protagonista e o ator são realmente semelhantes: o bigode. Isto leva o professor, logo de seguida, a um choque, temendo a perda da sua identidade. Aqui, segundo Ana Paula Arnaut[5], o protagonista toma consciência do outro que existe em si mesmo, refletido no espelho. A máscara que desenha causa-lhe perturbação e medo, um desassossego que por pouco não se transforma num estado permanente de estranheza em relação ao seu próprio ser. Tal momento constitui pois um cruzamento entre o estado de identidade como diferenciação do outro e como individualização absoluta do sujeito: ao ver que afinal o acrescento de um traço ao seu rosto torna-o absolutamente idêntico ao seu duplo, o protagonista estremece.
homem que acaba de voltar correndo da sua mesa de trabalho aonde foi buscar um marcador preto e agora, outra vez diante do espelho, desenha sobre a sua própria imagem, por cima do lábio superior e rente a ele, um bigode igualzinho ao do emprego da receção, fino, delgado, de galã. Neste momento, Tertuliano Máximo Afonso passou a ser aquele ator de quem ignoramos o nome e a vida, o professor de História do ensino secundário já não está aqui, esta casa não é a sua, tem definitivamente outro proprietário a cara do espelho. Durasse essa situação um minuto mais, ou nem tanto, e tudo poderia acontecer nesta casa de banho, uma crise de nervos, um súbito ataque de loucura, um furor destrutivo.[6]
A descoberta do protagonista está associada ao disfarce, pois Tertuliano Máximo Afonso necessita de uma proteção, uma máscara, para aproximar-se do seu duplo e experienciar a vida deste e deambular livremente pelos espaços onde possam confundi-lo com o ator. O professor tem um objetivo claro na empresa que o conduz, de descobrir António Claro, mas pauta-se pelo desejo de privacidade, pois a aventura que enceta só a ele lhe diz respeito, sendo o senso comum, na forma que atrás vimos de um monólogo interior tipicamente saramaguiano, o único interveniente nesta sua busca conscientemente preparada; a solução é prudente, como todo o carácter do protagonista, pois como conclui “o remédio seria disfarçar-me”[7], mesmo que ainda não saiba qual o artifício a usar. A escolha do disfarce não requer muita hesitação, decidindo-se Tertuliano pela ideia de uma simples barba postiça, sendo este o elemento clássico que permite à personagem amalgamar-se na paisagem humana que o espera, descartando, para isso, todos os adornos que o poderiam denunciar ou levar a parecer suspeito.
Levava a barba postiça meticulosamente ajustada à cara, um boné que tinha por fim lançar uma sombra protetora sobre os olhos, que à última hora decidiu não ocultar por trás de uns óculos escuros porque lhe davam, com o restante disfarce, um ar de fora da lei capaz de despertar todas as suspeitas da vizinhança e ser causa de uma perseguição policial em regra, com as previsíveis sequências de captura, identificação e opróbrio público.[8]
A barba postiça funciona neste quadro como uma defesa, não só perante o caminho que o professor decide percorrer na jornada individual que o espera, mas também em atenção a António Claro, o seu sósia, pois o protagonista no momento em que vê o encontro combinado entre os dois estar prestes a realizar-se acredita “que a barba postiça que iria levar o protegeria enquanto estivesse colocada, fundamentando esta absurda convicção na ideia firme de que não a retiraria no primeiro instante do encontro, só lá mais para diante”[9]. Sabemos que o que tem lugar no confronto que o disfarce opera entre este e aquele não é o que Tertuliano Máximo Afonso imaginava, devido a certas situações não previstas por ambas as personagens implicadas no imbróglio; pelo contrário, contra todas as expectativas, a consequência acaba mesmo por ser, mais tarde, após o encontro de ambos, a transição do disfarce do professor para o ator. Mais a mais, Tertuliano, numa tentativa de pôr um ponto final no assunto, é visto a “precipitar-se para a papelaria mais próxima a comprar uma caixa de cartão dentro da qual despachará a António Claro, via correio, nada mais nada menos que a mesma barba com que nos últimos tempos o vimos disfarçado.”10, como para comprovar a transição que ali se opera. Ao mesmo tempo, esta atitude de Tertuliano Máximo Afonso pode ser observada como uma exorcização da máscara, num grito de liberdade em relação à situação que o envolve com António Claro.
António Claro, por sua vez, em simetria com o modo de estar de Tertuliano que atrás demos conta, desperta para a curiosidade e para obsessão de conhecer a companheira do protagonista, Maria da Paz. Para tanto, usa uma forma de disfarce, de molde a também encetar a sua própria investigação em direcção ao seu homólogo. Irónico, contudo, é o facto de utilizar o mesmo disfarce de Tertuliano Máximo Afonso, a barba postiça. Neste atavio, inicialmente repudiado tanto por ele como pela esposa Helena, encontra António Claro um sentido. A máscara terá um objetivo obscuro, aos poucos descortinado pelo ator de cinema: ao ser usada, estará repleta de segundas intenções, apesar de também lhe servir de proteção, como a Tertuliano. Daqui nasce uma teia de ligações entre os dois que se antes não estava confirmada pela parecença na semelhança física mais se concretiza solidamente através da duplicação dos actos, como se pode ver no seguinte excerto:
é ele quem terá de disfarçar-se, e que aquilo que havia começado por parecer uma gratuita e tardia provocação do professor de História, enviar-lhe, como uma bofetada, a barba postiça, tivera afinal uma intenção, nascera de uma presciência, anunciava um sentido. Ao lugar onde António Claro se encontrará com Tertuliano Máximo Afonso, seja ele qual for, é António Claro quem terá de ir disfarçado, e não Tertuliano Máximo Afonso. E assim como Tertuliano Máximo Afonso veio de barba postiça a esta rua para intentar ver António Claro e a mulher dele, assim de barba postiça irá também António Claro à rua onde reside Maria da Paz.[10]
A máscara está dotada, então, enquanto disfarce, de sentido para as duas personagens da trama. Apesar da utilização do motivo estético por cada qual ser distinta à sua maneira, embora também aparentado alguma simetria nos gestos, tanto Tertuliano Máximo Afonso como António Claro necessitam do disfarce, quer para proteger a sua identidade, já assaltada pela descoberta um do outro, quer para se protegerem de uma sociedade que os massacraria se deslindasse o seu segredo.
O sorriso como meio para a máscara social

O sorriso é uma expressão facial que manifesta boa disposição, agrado, aprovação, bem como desprezo ou ironia, muitas vezes vista como uma atitude que o ser humano precisa de assumir nos mais diferentes tempos e espaços do trato social, principalmente no contexto urbano e cosmopolita.
A máscara social é muitas vezes referida na obra de José Saramago que temos vindo a apreciar, sendo o motivo do sorriso o mais acentuado pelo narrador, em perspetivas que apontam para modelos não só de verdade como de mentira ou do falso. Podemos a este respeito dizer que o sorriso é uma máscara que se coloca no quotidiano do ser humano e que muitas vezes toma o lugar da comunicação verbal, sendo por isso um veículo não-verbal de expressividade.
O professor, protagonista do romance, serve-se precisamente do sorriso como máscara social em vários episódios da história narrada, principalmente quando se encontra na escola onde leciona, no dever de manter uma relação cordial com os seus colegas professores. O esforço de Tertuliano para se integrar no meio dos professores é manifesto, transparecendo visivelmente. Apesar de o cansar tanto fisicamente como psicologicamente, pois não está em harmonia com o divertimento do grupo, deixando “aparecer um sorriso meio contrariado para corrigir”[11], esta forma de integração mundividente é uma tentativa da parte do protagonista para escapar do isolamento social.
Os professores, colegas de Tertuliano Máximo Afonso, também usam o sorriso, irónico e por vezes sarcástico, a que aqui decidimos chamar muito simplesmente de “sorriso amarelo”, como máscara quando se deparam com as ideias e intenções do protagonista para o ensino da disciplina de História. O facto é notado muitas vezes pelo protagonista e mesmo relatado ao director da escola quando aquele é chamado à sala deste. O superior hierárquico parece manifestar singular interesse pelas várias sugestões de Tertuliano no domínio do seu ramo de conhecimento, tomando pois o partido do professor de História, em oposição aos restantes colegas. O diretor da escola parece assim uma das poucas personagens do romance que não se deixam levar pela influência da máscara social, pois observamos nas suas poucas intervenções que, apesar de obrigado a cumprir certos protocolos devido à posição superior que ostenta, tem o carácter bem definido, pouco influenciável.
os seus colegas já não o tomam a sério, começam logo a sorrir logo às primeiras palavras, Os meus colegas são pessoas de sorte, têm o sorriso fácil, e o senhor diretor, Eu, quê, Pergunto se também não me toma a sério, se também sorri às primeiras palavras que digo, ou às segundas, Conhece-me o suficiente para saber que não sorrio facilmente.[12]
O protagonista, em relação aos colegas, tem já uma atitude de quase aceitação do comportamento que estes apresentam em relação à sua pessoa, vendo-os como uma multidão interligada pelos artifícios sociais. Refere-se ao fenómeno nos colegas representado como a uma capacidade quase inata para responder “com um sorriso fácil a palavras sérias”[13]. A atitude dos professores em relação a Tertuliano só se altera, de resto, em determinadas situações, nomeadamente quando o diretor da escola intervém, sem mesmo precisar de falar, servindo-se só do olhar para os repreender, como acontece com a colega de Inglês que “começou a sorrir, mas a mirada que o aludido lhe deitou, parada, ausente e ao mesmo tempo fria, paralisou o movimento que principiara a esboçar-se nos lábios”[14]; esta atitude, embora faça desaparecer o motivo do sorriso, também, a nosso ver, é considerada uma máscara, na medida em que pode significar o retirar de uma expressão e a colocação de outra, funcionando como um agrado social.
Ainda do sorriso se deve dizer que pode ser visto como um código na sociedade, realizando-se quase de uma maneira mecânica no que toca às relações interpessoais. O funcionário da loja de aluguer de vídeos que vimos anteriormente emprega uma forma de sorriso que a profissão obriga, numa tentativa de conquistar a simpatia de Tertuliano Máximo Afonso, fazendo questão de o atender da maneira mais elegante possível. Mas neste quadro há um desfasamento de sorrisos, cujo contraste dado pelo sorriso deste funcionário com o da sua colega, que a certa altura do romance aquando de uma nova visita do protagonista à loja o atende, é por demais evidente; na continuidade deste encontro informal, o funcionário reivindica o professor de História como seu cliente exclusivo com uma tal simplicidade, servindo-se para isso da conotação imperativa de duas palavras, como veremos descrito no excerto que adiante oferecemos para leitura; a sua colega, porém, afasta-se, mostrando o traço característico que aos poucos se desenha nos seus lábios. Saramago apresenta, assim, uma máscara/código revestidos de inutilidade, na medida em que o protagonista reage com total indiferença perante as máscaras que se lhe apresentam, em especial à do funcionário, conquanto exiba uma atitude sempre politicamente correta.
O empregado que o tinha atendido nas duas vezes que aqui veio estava ocupado com outro cliente. Fez de lá, no entanto, um sinal de reconhecimento e mostrou os dentes num sorriso que, sem aparente significado especial, podia disfarçar alguma turva intenção. Uma empregada que acudiu a informar-se do que desejava o recém chegado foi travada no caminho por duas curtas, mas imperiosas palavras, Eu atendo, e teve de voltar para trás depois de esboçar um pequeno sorriso que era, ao mesmo tempo, de compreensão e desculpa.[15]
Finalmente, o motivo do sorriso que temos vindo a apreciar como ponte para a máscara social parece evidenciar-se, não sem surpresa, no sósia do protagonista que atrás vimos, António Claro. Numa expressividade que condiz bastante com a personagem, António Claro é um ator experimentado em boa técnica teatral que faz do sorriso como máscara um lugar-comum na sua jornada. O episódio do encontro com Tertuliano Máximo Afonso marca uma das partes do romance em que a desonestidade de António Claro é revelada, nomeadamente no momento em que ambos comparam as horas de nascimento e o ator exibe a marca do seu sarcasmo, acompanhada de um sorriso, numa das suas desafiadoras respostas a Tertuliano. A construção do sorriso por António Claro naquele instante descreve uma encenação quase grotesca, onde estão reunidas “a franqueza e a maldade, a inocência e o descaro”.[16]
A curva dos lábios como constituição de uma máscara social parece ser um contínuo na vida de Tertuliano Máximo Afonso, como temos visto, denunciado não só pela arte das personagens que o rodeiam, mas utilizado também pela sua própria pessoa, embora com escassa frequência. A intenção obscura e irónica patenteada na ideia de uma máscara social está muito presente no romance através do sorriso, mostrando que este motivo não está só ligado a estados de plena felicidade como tradicionalmente se lhe convencionou atribuir, mas também a uma perspetiva mais maquiavélica e dissimulada que deve partir de motivações ulteriores.
Considerações Finais
O Homem Duplicado de José Saramago é um romance complexo que nos apresenta a história conturbada de dois sósias, Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, ou Daniel Santa-Clara. A máscara aparece aqui— como tema do trabalho, através das várias perspetivas apresentadas— como um escape e uma proteção à realidade do indivíduo, sendo utilizada nas diversas formas e contextos que demos conta, levando a descortinar na ocultação da verdadeira identidade e dos sentimentos que as personagens no romance em apreço têm dificuldade em demonstrar uma real intuição para o nosso mundo que, à semelhança daquele figurado por José Saramago, o imita embora não com consciência disso.
O nome, o disfarce e o sorriso parecem, dessa forma, estar interligados, na sequência que aqui apresentámos, pois podem ser considerados máscaras das quais o indivíduo se pode servir para manipular as suas circunstâncias a bel-prazer, comportando embora, obviamente, os riscos e as consequências que podem advir de tais artifícios, de que Tertuliano Máximo Afonso e António Claro são os principais vectores.



Bibliografia
Arnaut, Ana Paula. José Saramago. Lisboa: Edições 70, 2008.
Saramago, José. O Homem Duplicado. 3ª ed. Porto Editora, 2014.
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José Saramago, O Homem Duplicado, 3ª ed. (Porto Editora, 2014), 10-11. ↑
-
Idem, p. 53. ↑
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Idem, p. 95. ↑
-
Idem, p. 168. ↑
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Ana Paula Arnaut, José Saramago, (Lisboa: Edições 70, 2008), 45-46. ↑
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José Saramago, O Homem Duplicado, 3ª ed. (Porto Editora, 2014), 36. ↑
-
Idem, p. 209. ↑
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Idem, p. 161. ↑
-
Idem, p. 209. ↑
-
Idem, p. 42. ↑
-
Idem, p. 153. ↑
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Idem, p. 84. ↑
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Idem, p. 85. ↑
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Idem, p. 88. ↑
-
Idem, p. 76-77. ↑
-
Idem, p. 229. ↑