A Petição Pública do momento: uma comédia

Recentemente, declarações exageradas, desleixadas e até eventualmente grotescas de alguns deputados de um partido de direita em Portugal causaram uma comoção pública que não é incomum, mas que é, como todos sabemos, facilmente manipulável. Pode manipular-se essa comoção com maior ou menos grau de acerto, procurando levá-la a bons portos ou, antes pelo contrário, encaminhá-la para a adesão a iniciativas de inclinação quase fraudulenta, com características de falsificação intelectual e jurídica. É o caso de uma petição a favor da instauração de processo criminal a essas declarações, que presentemente circula na esfera pública.

Não é a mera intenção de levantar processo criminal que configura taxativamente a potencial burla — embora seja inteiramente duvidoso que as declarações em causa pudessem configurar crime, não é por si só absurdo levantar-se essa hipótese — mas sim o argumentário que lá consta — e que provavelmente 90% dos subscritores desconhecem, pois não leram a integralidade do texto, que é extenso e está escrito, como deve ser, numa linguagem jurídica. É um argumentário quase burlão, que parece coisa de advogado de vão de escada, repleto de falácias, contradições absolutamente gritantes, especulações sem resultado certo sobre as quais assenta quase todo o argumento, e um nexo lógico em constante derrocada, sendo nalguns pontos quase risível a sua debilidade. O documento é uma fraude intelectual e passamos aqui de seguida a demonstrar porquê.

  1. Logo no primeiro ponto, assinala que a morte de um cidadão decorreu em circunstâncias ainda por apurar, constatação que irá inviabilizar uma série dos argumentos posteriores.
  2. No ponto 6, depois de citar integralmente as declarações de um líder político, declarações essas que atribuem uma série de qualificativos às acções da vítima mortal e do agente policial, afirma que todas essas declarações são falsas e inventadas, quando (a) cerca de metade dessas descrições estão já comprovadas ou nunca estiveram sujeitas a discussão (nomeadamente que a vítima fugiu da polícia e abalroou vários veículos) e (b) cerca de outra metade depende das conclusões do inquérito referido no primeiro ponto.
  3. No ponto 7, afirma habilmente que a vítima não tinha cometido qualquer crime ao ser abordado inicialmente pela polícia, mascarando o facto de se ter posto em fuga logo de seguida e ter abalroado vários veículos, e omitindo também a alegação policial presente de que teria, antes dessa abordagem, ultrapassado um traço contínuo.
  4. No ponto 8, tira conclusões taxativas a partir de notícias da comunicação social, afirmando que estaria já provado que não existia nenhum ataque com faca, quando (a) só o inquérito enunciado no primeiro ponto o provará com credibilidade e (b) outras notícias da comunicação social dizerem exactamente o contrário.
  5. O ponto 9 é interessante e dependerá de jurisprudência para avaliar a sua viabilidade: afirma-se que não se pode caracterizar alguém como “bandido” apenas por ter em tempos passados cometido crimes, estando à altura com as penas cumpridas e vivendo como cidadão livre de pleno direito. É importante lembrar que, se isto for verdade, tanto se aplica a traficantes de droga como a neo-nazis: não é por uma pessoa ter tido um passado criminoso que não tem o direito a defender-se de expressões pejorativas e atentatórias contra a honra como “bandido”. Casos mediático recentes (Coxi, Machado) o ilustram.
  6. O ponto 10, que elencou a possibilidade de crime quanto à ofensa de memória de pessoa falecida, depende da jurisprudência referida.
  7. No ponto 12, sugere demagogicamente que uma família pobre e de poucos recursos não tem meios para apresentar queixa-crime pelo acima referido: isso é falso, pois o dispositivo jurídico da queixa-crime está acessível a qualquer cidadão, ao contrário do processo judicial independente.
  8. O ponto 15 é um exemplo gritante de contradição que chega às franjas do ridículo e que ilustra na perfeição todo o carácter potencialmente burlão do documento: alega, sumariamente, que qualquer elogio de uma actuação policial que implique perda de vida humana configura apologia ao crime, corrigindo logo de seguida para a exceção no caso da mesma ser justificada. Isto implicaria que (a) qualquer cidadão que mostrasse ou vocalizasse agrado por uma acção necessária e legítima da polícia desse tipo estaria a praticar apologia ao crime e (b) que seria desde logo possível invocar esse artigo jurídico mesmo antes de se conhecer o resultado do inquérito referido no ponto 1, que é o que os peticionários pretendem.
  9. No ponto 18, incorrendo talvez no defeito comum nas classes intelectuais de achar que as pessoas são estúpidas, sugere que o elogio de um polícia usar a arma de forma letal numa situação da qual ainda se desconhece os contornos criaria a percepção pública que os mesmos teriam o direito de disparar conforme qualquer situação. É muito provável que pouquíssimas pessoas creiam nisso.
  10. No ponto 20, levanta mais um dos eixos do seu argumento e uma nova acusação criminal, alegando que parabenizar agentes que usem a arma de fogo de forma letal incentiva desobediência dos mesmos face aos superiores hierárquicos, configurando crime de desobediência, isto, mais uma vez, antes de se conhecer qualquer resultado do inquérito referido no ponto 1 e de se saber se o uso da arma foi ou não legítimo. Não se limita a afirmar que podem as declarações incentivar a desordem e desobediência: afirma taxativamente que pretendem fazê-lo (que se trata de uma acusação grave e sem provas).
  11. No ponto 21, alega que afirmar que as forças de segurança são desrespeitadas pelos poderes públicos em detrimento de criminosos, um argumento político perfeitamente banal, configura também crime de incitamento à desobediência colectiva.
  12. A primeira parte do ponto 23, apesar de especulativa, sobressai como uma ilha de mínima lucidez na sua substância: coloca a hipótese de as declarações do político em causa poderem estimular situações em que decorra o uso excessivo de armas de fogo pela parte das autoridades. Se todo o documento se baseasse em leituras sensatas como esta, seria um texto radicalmente diferente. Na segunda parte, borra totalmente a pintura e sugere que tal incentivo potencia a instauração de uma ditadura.
  13. No ponto 26, referindo-se já a outro político, o líder da bancada parlamentar do mesmo partido, volta a repetir o argumento circular de que sugerir que as polícias deviam usar mais a arma de fogo configura apologia ao crime, não conseguindo provar (a) nem que o deputado em causa estaria a falar de usos ilegítimos da mesma (b) nem que o caso em questão configuraria uma dessas situações, estando dependente do resultado do inquérito referido no ponto 1.
  14. No ponto 27 repete essa acusação sem qualquer prova da mesma, alegando que o deputado estaria a falar de usos indevidos da arma de fogo, não estando isso patente em nenhum ponto das declarações do mesmo nem sendo possível prová-lo.
  15. No ponto 29, afirma falsamente que um deputado não pode (ou qualquer outra pessoa, já agora) incentivar agentes policiais a disparar a matar, quando existem situações em que a lei prevê essa legitimidade.
  16. No ponto 34, dirigindo-se já a um assessor parlamentar do mesmo partido, assinala, de forma absurda que alguém por ser funcionário público teria uma repercussão colectiva das suas palavras muito maior, algo de que decerto muitos professores, enfermeiros e varredores de rua discordarão, por nunca terem tido a oportunidade de verem quaisquer palavras suas amplificadas pelo mero estatuto de funcionário público.
  17. No ponto 36, levanta a hipótese do mesmo crime supracitado de ofensa a pessoa falecida, estando este dependente, como já assinalámos, de jurisprudência cautelosa, o que é legítimo, tendo porém referido mais uma vez a hipótese muito remota de incentivo à desobediência, no caso destas declarações ainda mais inaplicável.
  18. No ponto 37, imputa ao referido assessor — e, por associação, a todos os outros referidos — a aparência da defesa de execuções sumárias, quando não é possível (a) provar que os mesmos estivessem a referir-se a usos indevidos da arma de fogo e (b) que no momento em que as declarações foram feitas existisse informação que descredibilizasse a tese inicial de que a vítima estaria munida de uma faca e se teria dirigido aos agentes desse modo.

Todo o argumentário parece assentar em teses muito perigosas: a de que não é possível, nem a deputados nem a cidadãos de qualquer espécie, elogiar o acerto de acções policiais letais quando a informação que consta é de poderem ter sido legítimas, configurando isso apologia ao crime; e a de que o elogio de acções violentas mas legítimas da parte de autoridade policial é invariavelmente um incentivo à desobediência.

Nada disto aparenta ser minimamente credível e configuraria, caso as pretensões fossem validadas, uma situação social em que qualquer pessoa estaria interdita de emitir opiniões que validassem a acção policial antes de conhecidos quaisquer resultados de inquéritos — mas, curiosamente, essa interdição ao comentário não se estenderia a quem quisesse desmerecê-las e criticá-las, opiniões que, segundo a mesma ordem abstrusa de ideias, poderiam configurar leituras criminais exóticas da mesma espécie, nomeadamente na medida em que criticar acções policiais legítimas poderia também absurdamente configurar incentivo à desobediência para com os superiores hierárquicos, incentivo ao crime dos infractores com quem a polícia se cruzasse, etc. Ou seja, quando a polícia tivesse de usar a força, quem a quisesse elogiar estaria interdito de fazê-lo; quem a quisesse criticar, estaria à vontade. Este é um dos corolários disformes do argumentário barato do texto.

A qualquer pessoa cujo olfacto já esteja treinado para detectar este tipo de logros lhe pareceria, logo de início, que esta petição se trataria de um enredo muito débil, escrito no calor do momento sem suficientes elementos para o fundamentar, e que serviria, como tantas destas iniciativas civis infelizmente servem, mais para aproveitamento e auto-promoção de alguns dos seus proponentes — sendo aliás cerca de metade dos quais pessoas públicas do tipo “tudólogo”, gente sem suficiente credibilidade extra-mediática e que gosta de “aparecer” — e menos para benefício das causas que defendem. Também qualquer pessoa com o olfacto treinado nesse sentido e com conhecimento da vida pública portuguesa já teria a suspeita de quem foi ou quem foram os autores desta prosa estruturalmente fraca, cheia de pequenos buracos argumentativos, de falácias gritantes e de contradições sorridentes. Deixemos essa ou essas identidades para mais tarde.

Além disso, a qualquer pessoa que não se queira basear simplesmente no olfacto treinado, qualquer pessoa com honestidade, inteligência e, principalmente, tempo para ler o texto em causa, e que de facto o faça, facilmente lhe parecerá que o mesmo se trata de uma brincadeira com coisas sérias, um aproveitamento populista, incendiário e escrito com um argumentário de vão-de-escada que qualquer jurista tribalmente descomprometido reconheceria como pífio.

A análise aqui descrita fundamenta-se em duas preocupações mais próximas.

Primeiro, muitos de nós têm o desgosto de ver amigos que consideram inteligentes, embora não necessariamente informados, a caírem nestes logros e a darem a sua assinatura a um documento debilíssimo como este, sem o terem sequer lido além do título. Isso é dramático no ponto em que a aldrabice que pauta o argumentário de grande parte deste tipo de iniciativas de justiça social não convencem somente os iliteratos mais incautos mas chegar mesmo a conseguir enganar as classes intelectuais, que têm obrigação de pensar minimamente na lógica interna e externa de tais iniciativas e movimentos.

Segundo, o arco político dos peticionários é mais virado à esquerda e não existe nada de errado por si só com isso; mas se não surpreende ver pessoas de partidos e movimentos de extrema-esquerda aderirem a iniciativas populistas, surpreende e preocupa a infiltração de certas personagens de características potencialmente burlonas nos aparelhos de partidos de centro-esquerda, partidos esses que há vinte anos tinham ainda quadros capazes de detectar e descartar argumentários débeis como este, quer através do olfacto quer através da análise e da experiência. É muito importante que esses partidos saibam evitar isto, não através necessariamente da exclusão de ideias políticas pertencentes ao grande grupo das esquerdas, mas sim através da rejeição sóbria e lúcida de argumentários falaciosos que estão ao nível do populismo que dizem combater.