Crítica: Smile (Beach Boys, 1966-2004), ou como as obras incompletas são completas

A obra aqui abordada surgiu na carreira da famosa banda de surf rock polifónico e experimental, os Beach Boys, logo no auge inicial da sua carreira e da sua popularidade, tanto a nível de fama como de apreço da crítica, e representaria, em projecto, mais um passo na direcção da inovação e das novas formas que o formato disco de rock assumia na altura. Não existe, porém, nenhuma versão definitiva da mesma: o projecto inicial abortou e restam apenas as gravações das sessões da altura e uma versão muito mais tardia, re-imaginada 40 anos depois.

Não é suficientemente esclarecedor chamar a Smile, ou ao processo da sua produção, de labiríntico, como se fosse uma obra impossível de ser concluída. Não o é. aliás, muitos e diversos dos seus alinhamentos possíveis serviriam como conclusão ao conceito, por isso convém não confundir a sobrecarga mental envolta na sua criação e o falhanço da sua conclusão atempada com a noção de obra impossível, que Smile não é.

Inicialmente projectado em 1966, logo a seguir à conclusão do também lendário álbum Pet Sounds, tido pela crítica como um passo evolutivo da banda e do seu principal mentor, Brian Wilson, em direcção à obra conceptual e à pop abstracta inaugurada pelos Beatles, Smile surge como o projecto à medida das ambições de Wilson: igualar ou ultrapassar a qualidade, o impacto imediato e a influência futura que teve a obra da banda de Liverpool, Sg. Pepper. A ambição é justa e alcançável: embora o talento musical de Beach Boys não seja tão diverso e concentrado como Beatles, a enorme e vanguardista visão de Wilson aliada aos dotes naturais para as harmonias complexas do restante conjunto permitem esse projecto.

A empreitada veio a abortar por volta de 1967, maioritariamente devido ao colapso mental de Wilson, alimentado por uma orgia de drogas e um perfeccionismo doentio. Seguiu-se o lançamento de uma versão muito reduzida, já em pouco ou nada correspondente ao projecto original, e a subsequente esquecimento do projecto até quase três décadas depois, em que o mesmo foi lançado tanto pela produção da banda, aproveitando as sessões da altura, quer numa versão do próprio Wilson. O Smile de que vimos falar hoje situa-se algures no meio de todas essas versões, sem nenhuma ser a sua definitiva. De certo modo, isto adequa-se perfeitamente ao carácter abstracto, quase transcendente, do projecto inicial, de uma ideia muito dominada por uma série de circunstâncias e contingências específicas daquele tempo e daquele conjunto de pessoas envolvido no projecto, além do estado mental de Wilson, além da confluência de livre associações de ideias, muito alimentadas pelo consumo de alucinogéneos, em que quase toda a banda se volveu no processo de produção. Mas pretender diluir Smile na grande quantidade de obras experimentais influenciadas por drogas da época é apenas um exercício estatístico: a peça — quer enquanto conceito, quer enquanto versão semi-concluída — tem valor apreciável por si só, como obra complexa, onírica mas de uma forma sólida, e até não inteiramente experimental, já que Wilson e os restantes estavam já suficientemente habituados a muitas das técnicas utilizadas.

Descrevendo objectivamente a música, elenquemos, para começar, alguns pontos. É, no seu todo, uma sinfonia para o divino, intercalando entre o hino e a cacofonia, mas sendo provavelmente o trabalho de Beach Boys que mais os denuncia como uma banda de praia e de religião. Aliás, também seja útil dividir as suas características, manifestas tanto em passagens ou estilos específicos como em ambiências sonoras menos objectiváveis, como uma alternância entre jogos verbais alucinados e polifonia tendencialmente religiosa, parcialmente no sentido new age. Noutras palavras, compativelmente com a identidade da banda, as deambulações líricas, até certo ponto racionais, lembram realmente praias e estados de espírito dengosos, enquanto que as harmonias, que parecem ocasionalmente procurar maneiras naturais de os cinco rapazes da banda, já experimentados na polifonia pop, encontrarem novas formas para as suas vozes, novos entendimentos, sempre presentes, tendem elas mesmas para a prece etérea longe do logos da linguagem.

O disco inicia-se preicsamente, de um modo muito claro, com esse primitivismo da voz polifónica e a muito explícita prece, e passa logo de seguida para uma cacofonia circense. Loog nesse ponto, sentimos que a individuação dos nomes e dos conceitos derrete-se, depois de reduzida a reiterações mais devotas do que maníacas, porque contemplativas. Ao longo de toda a obra, algumas faixas têm uma estrutura que inicia com polifonia leve mas aventurosa, e passa a um refrão mais berrante e que não chega a atingir o limite do insano, mas não terá sido por isto que o álbum pereceu.

As letras são delirantes, sistólicas, quase oníricas, e quase como que procurando um idioma em que sejam entendidas. A gramática é por vezes esquecida. Os versos são muitas vezes compostos por trocadilhos simples, jogos de linguagem primários, infantis, como no tema de Plymouth Rock, uma rocha que rola e rebolar: de certo modo é o rock a rebolar de novo, rock submetido ao rock, passando a barreira dos ácidos, chegando ao pré-rock, novamente. Artifícios muito utilizados são as passagens corais, de tonalidades oníricas, em algumas faixas, que são repetidas noutras, de forma ainda mais diluída, é sintomático de um ambiente mental onde a memória não está orientada por uma sequência temporal mas sim montada em forma de teia, sem fluxo fixo. O mesmo ocorre com as letras, em que até muitos versos vão beber ao cancioneiro popular: neles encontramos trocadilhos e imagens de bucolismo campestre às quais o delírio, primeiro, e a psicose, depois, se agarram. Essas referências, porém, parecem quase todas advir do mundo da música: You are my sunshine, home on the range, peace in the valley etc.

Os ecos de frases musicais e verbais, presentes em toda a obra, já referidos, tanto podem ser a inutilidade de um intoxicado como Brian Wilson, como a exacta representação de um válido espaço mental. De acordo com a sua colocação na peça, aparentemente colocam-se na fronteira, mas mais perto de uma disposição intencional e menos de um delírio icon. Sente-se, nas relíquias que temos da construção do disco, que a intenção inicial seria, em parte, a disposição da abstração desses ecos, assim como a integração de todas as partes da peça num todo abstratamente coerente, processo complicado e exigente que terá travado Wilson. Não parece que o objectivo a alcançar fosse assim tão alto, correspondendo a uma obra prima que por vezes o próprio descreveu como pretendendo ultrapassar os álbuns conceptuais de Beatles; ou seja, Smile na cabeça de Wilson não seria a melhor peça de sempre, mas simplesmente Wilson ele próprio, em termos de vida, corpo e estado mental, terá colapsado.

As frases e motivos musicais que se repetem ao longo do disco, porém, parecem abeirar-se, não sucessivamente, mas reiteradamente, da compulsividade, denunciando talvez o colapso do estado mental do autor, então. Ao longo de todo o disco, a sensação de que a moca venceu o corpo, de que o mundo alterado e terra prometida está lá, mas que o corpo venceu, não conseguiu alterar-se. As repetições, ou, em linguagem literária, anáforas etc, deanunciam isso. Isto lembra como o universo de subsumir, resumir e reduzir a capacidade mental é tão semelhante entre usuários de certas drogas e as crianças. Não é certo que a bitola moral, que nas crianças muitas vezes é descrita como descrita como inocente e nos drogados não tanto, seja idêntica. Mas os fenómenos de linguagem, tanto musical como verbal, presentes no álbum sou muito sugestivos dessa semelhança. Por exemplo, quando se referem as margaridas na cantina, que mantém os espíritos em alta, e depois sugere a Margarida que dance.

Os Beach boys são, e sempre foram, é bom não esquecer, uma mistura de religião com praia (corpo, adolescência, etc.). E esta obra em específico, uma que nunca foi inteiramente acabada mas que na verdade se entrevê perfeitamente coerente no conjunto das suas versões finais, é no fundo um álbuns de drogados, mas sendo tal apenas uma espécie de categoria mas não de definição do seu corpo e do objecto a que presta culto. Smile não é sobre um sorriso, mas sobre o objecto de um sorriso e sobre o carácter ferozmente abstracto que um alucinado é capaz de conceber. Quanto à conclusão geral desta breve recensão e crítica, será talvez que uma obra não necessita necessariamente de conclusão, de ponto final, de estrutura definitiva, ou sequer de mapa de intenções. Um esboço pode ser já uma obra completa/incompleta, conforme se sustente suficientemente na sua singularidade para que as partes em falta não façam falta.