Destacamos hoje, numa partilha domingueira, quatro personagens unidas por um critério maioritariamente abstracto e sem nexo aparente. Fica ao gosto do leitor encontrar as semelhanças, as diferenças, ou simplesmente as associações livres que levaram ao seu encontro nesta publicação.
Começamos com o magnífico autor e pensador italiano Niccolò Machiavelli, cuja singularidade levou também a linguagem comum a adoptar o seu apelido como adjectivo, aplicado por vezes bem, outras vezes mal. Ao contrário do que é costume pensar, Maquiavel não é um implacável cínico, mas sim um distinto consequencialista e/ou pragmático, sendo toda a sua obra, em particular o lendário volume O Príncipe, dedicada não ao poder pelo poder mas, em última análise, ao bem comum. Maquiavel transpõe a moral clássica dos romanos para a contemporaneidade, passando por cima da cristandade do efeito imediato e das considerações absolutas e presentistas.
Don Rickles, por seu lado, comediante muito pouco conhecido em Portugal, especializou-se durante as décadas de sessenta e setenta do passado século num estilo singular de “comédia de insulto”, categoria que o mesmo em parte rejeitava mas que melhor descreve, em termos simples, o seu número mais típico. Dono de uma capacidade improvisacional notável, Rickles era capaz de fazer jocosa e simpática troça de todos os espectadores de um seu espectáculo, inventando associações, argumentos, observações bizarras, sequências de ideias mirabolantes e variações de registo extraordinárias e surreais. Tornou-se também famoso pela sua associação ao lendário grupo do entretenimento designado por rat pack e constituído por Frank Sinatra, Dean Martin, entre outros. Este seu estilo permitia-lhe ser o rei dos roasts televisivos, eventos em que uma série de notáveis do entretenimento se dedicavam a troçar publicamente uns dos outros, e cujo modelo foi recentemente revisitado em eventos semelhantes.
Depois, temos o nosso querido amigo de todos nós, o doutor Adolfo Hitler, que vive, quer queiramos quer não, nos nossos pesadelos, implícitos ou explícitos. Na actualidade, curiosamente, ainda mais do que nos anos e décadas que se sucederam à segunda grande guerra, a imagem do senhor Hitler é imediatamente invocada sempre que surge um político, uma ideologia, um grupo de cidadãos afectos a algum campo de ideias que tenha sido encarnado pelo mesmo — por exemplo, o nacionalismo, o autoritarismo, o belicismo, militarismo, ou mesmo a mera glorificação da força policial civil, entre muitos outros campos — o que torna o debate de ideias em termos racionais sobre estes tópicos um pouco difícil, e também nos prende a uma visão da história que, ao invés de ter começado há cinco mil anos, desde que temos registos, começa em 1927 ou aproximadamente — o que, como é obvio, nos transmite uma visão de excepcional incompletude.
Por último, convocamos ainda a famosíssima figura do Conde Drácula, maioritariamente ficcional mas em parte inspirada num determinado senhor da guerra das terras da Roménia, lá por volta de 1500. Sendo o representante mais notável da raça dos vampiros, o conde mistura vários tropos, todos eles muito interessantes ao nível do seu significado psíquico: o vampirismo enquanto variante do canibalismo, a fronteira entre a pessoa viva e a pessoa sem vida, e vários aspectos do sobrenatural, além de uma série de fetichizações do mórbido, do romance gótico e da aristocracia. Este é o grande patriarca da grande família dos vampiros ficcionais, hoje alargada até ao vasto universo do romance adolescente, em que a postura trágica do amor que envolve estas criaturas sugadoras de sangue é perfeitamente adequada ao dramatismo típico dos recém-púberes.
Deixamos assim aqui estas quatro simpáticas figuras que, à excepção de Rickles, cujo desaparecimento recente ainda não permitiu a canonização do reino dos mitos — embora já tenha surgido como personagem num receente filme de Martin Scorsese, The Irishman — têm toda elas em comum, de facto, uma certa prevalência do lado mitológico sobre o lado biográfico: até mesmo o doutor Hitler é, hoje, mais um boneco de pesadelos do que propriamente o político desastroso que, biograficamente, foi; Maquiavel, igualmente, reside na imaginação do público como equivalente a um certo cinismo implacável que não corresponde exactamente ao pensamento do Maquiavel histórico; e o simpático conde vampiresco já nasceu ficção e mito, mesmo que alicerçado numa figura histórica, figura essa cuja popularização, também mitificada, evoluiu num sentido completamente diferente do vampiro. Bom domingo a todos!