O Olhar Humorístico como Possibilidade do Humano

O presente texto tem a intenção de esclarecer o papel do olhar humorístico como possibilidade do humano. O olhar humorístico é um olhar experimental de lidar com o mundo e com as coisas, como uma estratégia para reagir ao sofrimento, reduzindo e atenuando o medo da morte. Um olhar que transforma a realidade, ainda que apenas na sua aparência. Um olhar que permite adotar uma distância entre si e si próprio. É, no fundo, um olhar especial, diferente de qualquer outro, que permite transitar duma situação aporética para o mínimo de possibilidades. PALAVRAS-CHAVE: Olhar humorístico – mundo – aparência – humano – possibilidades.

Raciocinar é rir. O cume da sabedoria humana é ver os reversos das tragédias sociais: lá está por força a comédia. A ignorância que esteriliza, e mirra e encalvece é a que só deixa ver uma face da medalha.

Camilo Castelo Branco, Mulher Fatal

“I laugh in life,” I thought, “so why not observe what it is that makes me laught

Steve Martin, Born Standing Up

Ele avançava, tendo sob os pés frieiras.

Aristóteles, Retórica

I.

Das duas uma: ou aquele que se dedica a escrever sobre humor resiste à tentação de cair no mais completo aborrecimento, evitando notas de pé de página com os nomes de sempre (Platão, Aristóteles, Hobbes, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard, Freud, Bergson, et cetera) distribuídos pelas teorias de sempre (superioridade, incongruência, alívio); ou resiste à sedutora inclinação de se mostrar exageradamente faceto, prevenindo, está claro, um rol de caóticas chalaças. Poucos são, em suma, os que nesse funambulismo, se mantêm originais, ponderados, tratando do humor com inteligência e doses comedidas de qualidade humorística. Infelizmente, o autor deste trabalho não detém nem a originalidade e ponderação necessárias nem uma inteligência tão apurada que lhe permita doses comedidas de aparato cómico. Sobra-lhe, portanto, a única opção (e a mais atingível): consubstanciar o aborrecimento da enganadora erudição com uma lista de pilhérias que, como se sabe, não provocam o riso a ninguém. E é conhecida por todos a reles imagem de que não há nada mais grotesco do que ver alguém a fazer força para ter graça.

Ora, a proposta aqui não será tanto discorrer sobre as muitas teorias do humor ou encontrar um argumento sólido para a utilidade dele, mas circunscrever a tarefa ao olhar humorístico, aquele olhar especial e lúdico que diz respeito ao humorista, mas que aqui será também utilizado em referência ao entendimento do humano.

Que é afinal o olhar humorístico? Em traços gerais, é um modo de operar no mundo, de observar as coisas, de transformar a realidade (pelo menos na sua aparência, pelo que se revela uma vitória de Pirro), de adotar pontos de vista experimentais (com o recurso, por exemplo, à pergunta «E se?»), de manter uma certa distância entre si e si próprio. Ou seja, é um olhar especial, diferente, pois, de qualquer outro. Ora, se a filosofia se verifica quando não enxergamos nada do que está diante de nós, e, por isso, se esforça em abandonar essa situação, tentando tornar claro o que outrora era opaco, o olhar humorístico serve-se dessa opacidade, não para tornar claro alguma coisa, mas produzir sentidos, possibilidades nessa opacidade – nunca saberei o que é a essência de um penico, mas se no-lo puser do avesso pode muito bem servir de elmo de Mambrino[1].

Em jeito de conclusão, o contributo do olhar humorístico é inegável para o humano. Desta forma, é nele que nos vamos fixar de ora em diante.

II.

É comummente sabido que a intenção do olhar humorístico é justamente prevenir uma dor de dentes. Não é verdade. A intenção do olhar humorístico é reduzir sim o sofrimento do humano ante experiências, muitas das quais limite; reorganizar a relação de cada um com o mundo; amparar-se nas desventuras do quotidiano que o tentam aniquilar; manter-se estrangeiro no mundo e, mais importante, dentro de si. E se possível, claro, aliviar a dor de dentes.

Numa entrevista à Paris Review, perguntaram a Woody Allen se os humoristas tendem a olhar para o mundo de uma forma ligeiramente diferente das outras pessoas. O humorista nova-iorquino respondeu sem mais: «Sim. Penso que se tiver uma perspetiva cómica, quase tudo o que acontece tende a passar por um filtro cómico. É uma forma de lidar a curto prazo, mas não tem efeito a longo prazo e requer, por isso, uma renovação constante e interminável. Daí as pessoas falarem que os comediantes estão sempre em alerta, atentos a tudo. É como drogar constantemente a sensibilidade para que se possa sobreviver com menos dor.»[2] A perspetiva cómica – ou olhar humorístico – dá-se na falência de possibilidades, ou seja, da vida. Como conseguimos então identificar possibilidades? Como transitámos da situação aporética, da encruzilhada das impossibilidades, para o mínimo de possibilidades? Tentamos dar resposta adiante.

III.

O escritor português Dinis Machado escreveu um texto importantíssimo que se chama Qual é o lado mais cómico disto?[3]. É um texto muito curto, mas que traz à luz o que queremos dizer quando falamos de olhar humorístico. No texto, o autor escreve que uma das grandes descobertas da infância foi constatar que se interrogava de modo contínuo assim: «Qual o lado mais cómico disto?». Acrescenta depois que «daí a fazer essa pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo». Mais à frente, conta-nos uma experiência pessoal. Ao patinar no passeio com botas cardadas, uma queda violenta arrancou-lhe o dente da frente. Perante a brutalidade do acontecimento, e sob o olhar das pessoas que o rodeavam, a pergunta surgia-lhe: «Qual o lado cómico disto?». Ora, esta pergunta, «a armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro», como o autor se referia, é justamente a pergunta que procura possibilidades: o que é que aquele infortúnio tem de mais do que a simples tragédia. É exatamente essa pergunta que faz desencadear o olhar humorístico.

A pergunta de Dinis Machado é a obsessão de todo e qualquer humorista. Ou de todo aquele para quem, de uma maneira ou de outra, esse olhar é dominante, preeminente (como, por exemplo, precisamente um humorista). É uma pergunta que nos leva automaticamente a assistir aos desfechos trágicos numa esfera, digamos, privilegiada, pois somos afastados da grave realidade que desabou sobre nós e, por consequência, acabamos por adotar uma perspetiva superior como se estivéssemos a manobrar o títere que sofreu essa desgraça, ou seja, nós mesmos. É um ventriloquismo entre nós e nós mesmos.

IV.

Há uma ideia antiga bastante sedutora de que a comédia é igual a tragédia mais tempo. A ideia é atribuída tanto a Mark Twain e Carol Burnett como a Steve Allen e Woody Allen. Tendo em conta a fragilidade das fontes, talvez devamos optar por uma frase mais segura: costuma-se dizer que a comédia é igual a tragédia mais tempo, ou seja, ser capaz de olhar para um episódio trágico que nos aconteceu há anos de uma forma irrisória e descontraída agora. Mas essa equação ficou mais completa ainda com a sugestão de Ricardo Araújo Pereira de que a comédia é igual a tragédia mais distância. Uma dessas distâncias é o tempo, como acabámos de ver. Já agora, veja-se, a título de curiosidade, a original e perspicaz piada de Jerry Seinfeld sobre distância e tempo: «Podemos medir a distância através do tempo. / – A que distância fica aquele lugar? / – A uns vinte minutos. / Mas ao contrário não funciona. / – A que horas saímos do trabalho? / –Daqui a cinco quilómetros. [4]

Mas acrescentou mais duas: a distância que vai de mim a um outro, como a célebre frase de Mel Brooks, «Tragedy is when I cut my finger. Comedy is when you fall into an open sewer and die.». E a distância mais difícil de conservar, que tem muito de semelhante com a experiência tragicómica de Dinis Machado: a distância entre nós e nós mesmos: conseguir manter uma reflexão entre mim e mim, mas também a capacidade de mudar de ponto de vista, não no sentido de alterar a situação, mas de a perceber, «como quando damos um passo atrás diante de um quadro e vemos pormenores que, tendo estado sempre na tela, não tínhamos sido capazes de captar.»[5]

É interessante Ricardo Araújo Pereira trazer à liça uma analogia de alguém que, se aproximando, deixa de ver e, afastando-se, vê de modo mais claro. Os movimentos de aproximação e afastamento, de contração e dilatação são mecanismos do olhar humorístico, porque nos dão perspetivas novas, vários níveis de compreensão, possibilidades outras. Para continuarmos com a analogia de Ricardo Araújo Pereira, podemos dizer que, para cada quadro, há uma direção requerida, umas vezes de aproximação, outras de afastamento. O olhar humorístico é uma lupa, aumenta o objeto ou situação quando este é pequeno, outras vezes diminui quando é grande, sempre com o propósito de dar a ver o que antes não era tão claro assim. No género específico da caricatura, vemos isso muito claramente, e.g., pelas reações dos amigos do retratado. A preponderância do exagero em traços particulares do rosto do retratado, revela, quando terminada, a habitual reação: «Realmente, o teu nariz é mesmo assim».

Na literatura, no sentido mais lato, há um exemplo perfeito sobre o jogo de pontos de vista do olhar humorístico e como eles se traduzem na compreensão do humano, o magnus opus de Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver. Vemos a condição do humano de modo muito mais nítido com as mudanças de perspetiva, com o olhar humorístico e corrosivo que Swift imprime no romance. O livro, além de ser filosófico par excellence, é um tratado sobre o olhar humorístico. Gulliver, não há dúvidas, é um humorista e vive como um.

Ora, quando o temerário Gulliver, herói do livro, se joga na sua segunda viagem e se aporta no país dos Brobdingnag, vê o seu ponto de vista sobre as coisas modificado radicalmente. Torna-se numa minúscula criatura perante o tamanho monstruoso dos autóctones. Narra o próprio uma situação rocambolesca por ele observada, em que, perante um jantar, uma ama tentando acalmar o bebé que chorava à mesa decidiu em último recurso dar-lhe de mamar: «Devo confessar que nunca nada me provocara tanto asco como a visão daquele seio monstruoso, para o qual não tenho termo de comparação para que o leitor possa ter uma ideia do seu volume, da sua forma e da sua cor. […] Isto fez-me matutar algum tempo no tom de pele muito branca das nossas senhoras inglesas, que nos parecem tão belas tão-só, afinal de contas, porque são do nosso tamanho, e os respeitantes defeitos não podem ser por nós percepcionados salvo através de uma lente de aumentar; se fizermos essas experiência, percebemos que até as peles mais macias e alvas são, quando assim escrutinadas, ásperas, sulcadas e de tonalidade desagradável.»[6] Em outro episódio, ainda no mesmo país, cruza-se com damas de honor que o deixavam esticar-se, sempre que quisesse, nos seus peitos, mas que causavam nele tonturas e enjoos, devido ao cheiro nauseabundo que exalava das suas peles, «os meus sentidos eram comparativamente mais aguçados em proporção com a minha pequenez, e que a presença daquelas ilustres senhoras seria deveras agradável aos olhos dos seus apaixonados.»[7]

Jonathan Swift foi alguém que percebeu a eficácia do contraste, da modificação do ponto de vista, da inversão, do mecanismo do absurdo e do humor para dar a ver melhor aos leitores ou para os ajudar também a darem-se conta de si. O olhar humorístico tem essa eficácia: compreendemos mais rapidamente o conteúdo percecionado, acrescentando-lhe, por exemplo, um bigode ou invertendo-lhe os papeis de tal modo que exponencie possibilidades que até à altura eram vistas como nulas.

V.

Há uma célebre piada do comediante Jerry Seinfeld que diz: «O paraquedismo é, sem dúvida, a coisa mais assustadora que já fiz. Pergunto: Para que serve exatamente o capacete? Será possível safarmo-nos parcialmente? Acho que, se saltamos de um avião e o paraquedas não se abre, o capacete é que passa a usar-nos como proteção. Mais tarde, o capacete fala com os outros capacetes: “Ainda bem que ele estava lá, ou então eu teria chocado com o chão diretamente. Nunca se deve saltar de um avião sem um humano preso por baixo de nós. É uma regra de segurança básica”»[8]. Este é um exemplo muito claro do resultado de um olhar humorístico: através da inversão da perspectiva utilitária do sujeito, permite ver o que sempre esteve lá e não víamos, abrindo, por si, novas possibilidades de interpretação. Ao capacete, um mero instrumento, que sempre para todos teve uma e só possibilidade, ou seja, um ponto de vista convencional, o olhar humorístico cedeu-lhe uma outra. Pode contestar-se essa atribuição, mas creio não ser descabido, porque, como diz o mesmo comediante, «as piadas podem fazer parecer as coisas verdadeiras». O humor joga precisamente nesse campo. Inspira em algum momento ordenar a ordem das coisas, o caos. A lógica duma uma piada serve em contraposição à falta de lógica do mundo, por muito absurda que ela seja.

VI.

O olhar humorístico tem várias particularidades, mas uma há que repele mais do que atrai. A força do hábito que por desleixo endurece o olhar, como se lê neste magnífico exemplo de Kafka: «Os leopardos invadem o templo e bebem o conteúdo dos vasos sacrificiais, esvaziando-os; isto repete-se incessantemente; por fim, esta situação pode calcular-se de antemão e torna-se uma parte da cerimónia»[9]. Swift também deixou uma nota sobre o assunto em As Viagens de Gulliver. Quando a personagem Gulliver regressou, depois da estada no país dos Brobdingnag, para a sua família e terra natal, tinha a impressão de os criados o contemplarem como se fosse um gigante: «Faço menção a este aspeto para que se perceba bem a grande força de tudo o que é movido pelo hábito e pelo preconceito».

Só as crianças, os loucos, os humoristas – e acrescente-se os filósofos – conservam a capacidade de manter o olhar fresco, experimental, lúdico, mesmo que os objetos ou situações tenham passado a integrar o ritual sagrado ou convencional. O humorista deve levar a sério a tarefa de se manter estrangeiro no mundo e dentro de si mesmo, como se fosse um alienígena que, acabado de aterrar no planeta Terra, compreende que tudo para onde dirige o olhar é estranho e sem sentido e, por conseguinte, tudo se lhe apresenta como inúmeras e infinitas possibilidades. O olhar humorístico serve para ver as coisas não como elas aparecem, mas como possibilidades de serem outras coisas além dessas, como por exemplo um urinol que, desviado do seu contexto próprio e removido a sua função utilitária, é elevado a outra categoria, a «fonte» e, consequentemente, a arte.

Fountain 1917, replica 1964 Marcel Duchamp 1887-1968. http://www.tate.org.uk/art/work/T07573.

VII.

Ricky Gervais, humorista britânico, vai mais longe. A sua regra de ouro é não haver assunto nenhum no qual não possa ser alvo de piadas, de comédia, ou seja, de olhar cómico. Todo o olhar dele é humorístico. Prova assim que é possível levar uma existência olhando para as coisas em constante recurso ao ponto de vista humorístico. Demais, ele abdica do olhar sério, neutraliza-o, chegando mesmo, muitas vezes, a obliterá-lo. «A vida é para ser contemplada de forma humorística» diz ele. É uma existência puramente estética. É alguém que vê mais do que os outros, ou melhor, assiste à realidade com uma elasticidade maior do que os demais. O olhar dele é possibilidades. Permite-lhe olhar sobre o todo, gozar de uma compreensão da natureza do mundo in extremis. Para ele, não há a pergunta, ou melhor, não há essa procura do lado cómico porque justamente o lado cómico está presente em todo o lado, ou seja, tudo o que há, há na medida que é cómico.

É um estilo de vida, um jeito de ver, de aceder ao mundo e a si. O seu olhar encerra em si as possibilidades, as várias que lhe permitem adotar perante uma catástrofe – a morte de alguém querido, por exemplo – tentando encontrar nisso a comicidade, ou seja, o belo. O olhar humorístico permite produção de sentido, tal comos outros olhares (filosófico, por exemplo), mas é um sentido que tem um fim cómico, um produzir um riso. A miríade de possibilidades do olhar humorístico dá ao humano uma consciência maior de si próprio.

VIII.

Todo o ponto de vista humorístico é uma forma inadequada de olhar para a realidade, e de se lançar também nela, como tão bem Drummond escreveu «Vai, Carlos! Vai ser gauche na vida»[10]. Ou no caso de Chaplin, que observa a entrada de trabalhadores numa fábrica e vê a ida do gado para o matadouro. Não há dúvidas de que para os humoristas, «a realidade é uma hipótese repugnante»[11], e a urgência de arranjar outras hipóteses é a obsessão e a monomania deles.

IX.

De permeio à juventude até aos seus 50 anos, Umberto Eco sonhou em escrever um livro sobre a teoria da comédia. A razão parecia legítima: porque os livros sobre o assunto não tinham sido bem-sucedidos. O fenómeno do humor parecia-lhe complexo e todas as teorias eram incapazes de o explicar. Nunca se aventurando, manteve sempre uma suspeita em relação à comédia: que estava relacionada com o humano ser o único animal que sabe que vai morrer[12]. Para ele, a comédia era uma reação quintessencial ao medo da morte. Ricky Gervais diz também que, para apreciar a vida, temos de contemplar a morte.

A morte é um assunto sério no humor, porque é cómico. No fundo, o olhar humorístico tem sempre como horizonte a morte. A morte pode viver sem o olhar cómico, mas esse olhar não vive sem a presença da morte. Vive com a gravitas ante os ombros; neste caso, entre as pálpebras. Por isto, um dia ter um fim é que traz alguma graça.

«Eu não quero alcançar a imortalidade através do meu trabalho. Mas através de não morrer». Apesar de, aparentemente, Woody Allen estar a dizer o contrário daquilo que foi dito antes, a piada só resulta porque há precisamente uma inevitabilidade nessa premissa: a morte. Tem piada, porque ele sabe (e sabemos todos) que, no fim, nos resta o silêncio e o escuro. Vai ao encontro daquilo que Ricardo Araújo Pereira escreveu: o humor é «uma espécie de mau perder que leva o humorista, não a adaptar-se ao mundo, mas afeiçoá-lo a si».

No álbum da comediante Tig Notaro, titulado Tig Notaro: Live, produzido um dia depois da comediante ter recebido o diagnóstico de cancro e uma grande possibilidade de morrer não muito tempo depois, proferiu: «Good evening. Hello. I have cancer. How are you? Hi, how are you? Is everybody having a good time? I have cancer. How are you? Ah, it’s a good time. Diagnosed with cancer. It feels good. Just diagnosed with cancer. Oh, God. Oh, it’s fine. Here’s what happened. It’s very personal. Found a lump. Guys, relax. Everything’s fine. I have cancer. Found a lump, got a mammogram. I ended up getting biopsies, which is painful. It feels like being stabbed. I felt like I’d been rear-ended all day, and then just dropped off back at my house. I couldn’t move or anything. And it was so intrusive and horrible. And I was just like, ‘God. After all of these like ice pick stabbing feelings, I’d better have cancer.’ Somebody over here just keeps going, ‘Oh, Oh, I think she might really have can- cer.’ Who’s taking this really bad? Oh, it’s ok. It’s ok. It’s going to be ok. It might not be ok. But I’m just saying, it’s ok. You’re going to be ok. I don’t know what’s going on with me.»

Sobre a honestidade crua e lancinante de Tig Notaro, refletiu Louis C.K.: «This show was an amazing example of what comedy can be. A way to visit your worst fears and laugh at them. Tig took us to a scary place and made us laugh there. Not by distracting us from the terror but by looking right at it and just turning to us and saying ‘wow. Right?’ She proved that everything is funny. And has to be. And she could only do this by giving us her own death as an example. So generous.» É isso que a comédia e o olhar humorístico fazem: “That’s what we do. We take a subject and don’t leave it alone until there’s nothing left of it.”, disse Louis C.K..

Se não houvesse a morte, não haveria o recurso ao olhar humorístico. Não era preciso. Esse olhar consola, atenua a angústia da finitude. «E se tudo for uma ilusão e nada existir? Nesse caso, eu paguei excessivamente pelo meu tapete»[13]. Em momentos declaradamente tensos, não altera, mas alivia. Como na anotação de Kafka no seu diário no dia 2 de agosto de 1914: «A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, natação.»[14] Quanto maior for a catástrofe, mais o olhar humorístico tenta encontrar o cómico.

Não por acaso encontramos os ditos mais espirituosos, isto é, as piadas, nas últimas palavras de alguém que falece. Há uma caterva delas, mas dá-se o exemplo do filósofo Thomas More. Conta Erasmus que, quando More foi enviado para a Torre de Londres e recebeu a sua sentença de morte, escreveu uma bela oração e algumas cartas de despedida. No dia da execução, a sua artrite dificultou-lhe a caminhada até ao patíbulo. Então, quando se aproximou, pediu educadamente ao carrasco para o ajudar a subir para o palanque, uma vez que na descida, disse ele, era capaz de o fazer sozinho.

X.

Assim sendo, o olhar humorístico é uma catástrofe do olhar que provoca uma tensão com as possibilidades dos conteúdos percecionados. Há uma recusa nesse olhar de nos entregarmos ao mundo, permite-nos defender perante as inevitabilidades e endireitar o estado das coisas, por muito que o ato de endireitar seja aparente e infrutífero. Como nos versos seguintes de Horácio: «Um motejo, um ridiculo frizante, / Grandes cousas melhor decide ás vezes, / Do que a propria razão austera e forte»[15].

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No fundo, o olhar cómico permite desconstruir a familiaridade que temos com o mundo. Faz-nos afastar dele como uma criança o faz intuitivamente, que, olhando para um cômoro, vê a possibilidade de um escorrega; que, olhando para um degrau, vê a possibilidade de um banco. Esse olhar profundamente estético joga com a relação do humano com o mundo, relacionando-se com a vida de modo livre e lúdico.

Diz, por fim, Ricardo Araújo Pereira: «Talvez as pessoas que fazem do humor uma segunda natureza sejam mais frágeis do que as outras, tenham mais dificuldades em lidar com a aspereza do mundo. Por isso, inventam um estratagema que lhes permite assistir à vida a partir de um refúgio»[16].

A filosofia e o humor são muito íntimos no que toca ao âmbito experimental dos pontos de vista. Em defesa do olhar cómico, cita-se Walter Benjamin: «Não existe melhor ponto de partida para o pensamento do que o riso» […] Para ser mais preciso, os espasmos do diafragma, regra geral, proporcionam maiores probabilidades de pensar do que os espasmo da alma». Quando o olhar cómico surge perante qualquer fatalidade, ou melhor, quando conseguimos adotar esse olhar como modus operandi, vivemos uma experiência estética. As coisas surgem-nos de forma peculiar, desprevenida, encantatória e fascinante, distraindo-nos assim da morte, que «é uma das poucas coisas que se pode fazer simplesmente deitando»[17].

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  1. Referência a D. Quixote, de Cervantes

  2. Woody Allen, The Art of Humor in Paris Review

  3. MACHADO, Dinis (1989) Reduto Quase Final. Lisboa: Bertrand, página 19.

  4. SEINFELD, Jerry (2004) Linguagem Seinfeld. Lisboa: Gradiva, página 67.

  5. PEREIRA, Ricardo A. (2016) A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num bar. Lisboa: Tinta-da-China, página 24.

  6. SWIFT, Jonathan. As Viagens de Gulliver. Lisboa: Guerra e Paz, 2017, página 117

  7. SWIFT, Jonathan. As Viagens de Gulliver. Lisboa: Guerra e Paz, 2017, página 151

  8. SEINFELD, Jerry (2020) Isto Tem Piada?. Lisboa: Vogais, página 46.

  9. KAFKA, Franz. «Aforismos» (escritos na localidade histórica de Zürau). Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.

  10. ANDRADE, Carlos D. (2022) Vai, Carlos! O primeiro Drummond. Lisboa: Tinta-da-China, página 11.

  11. PINA, Manuel A. Todas As Palavras – Poesia Reunida. Lisboa, Assirio & Alvim, 2012.

  12. ECO, Umberto. The Art of Fiction in The Paris Review, nº. 197.

  13. Referência a uma piada de Woody Allen

  14. KAFKA, Franz (1990) Diários – Diários de Viagem. Lisboa: Relógio D’Água, página 332.

  15. HORÁCIO. Satyras e Epistolas, I. Porto: Typographia Commercial, 1846, página 62.

  16. PEREIRA, Ricardo A. (2016) A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num bar. Lisboa: Tinta-da-China, 2016, página 24.

  17. SCLIAR, M.; TOKER, E.; FINZI, P. (1990) Do Éden ao Divã. Lisboa: Tinta-da-China, 2019, página 132 [piada de Woody Allen]