Poucas vezes concebido no imaginário popular como um tropo importante e recorrente, e muito menos como um género com mérito próprio, singularmente constituído, a verdade é que o dispositivo ficcional da perseguição tem força e relevância o suficiente não só como artifício em cenas acessórias e em cenas-chave de uma narrativa, como também para alicerçar todo o conteúdo central de uma película de cinema — e, possivelmente, de outras formas de arte, como a do romance. É este recurso que hoje destacamos, tanto na sua vertente segmental — falando um pouco de como as cenas de perseguição têm sido utilizadas ao longo da história do cinema — como na sua vertente de género cinematográfico pleno — destacando e homenageando o chase movie, filmes que são inteiramente ou quase inteiramente constituídos por uma perseguição.
Seguramente, noutros meios narrativos, versões deste dispositivo podem ser encontradas: no romance, está claro; no bailado, porventura; na composição musical programática e/ou progressista, eventualmente. No caso cinematográfico, a agilidade dos recursos do meio — os movimentos de câmara, a montagem, a excitação dos stuns e dos efeitos especiais — permitem uma particular adequação da forma à excitação primordial da perseguição — excitação essa que tem seguramente raízes em impulsos ferais presentes em todos nós.
O tropo tem uma história que curiosamente começa na comédia, no potencial humorístico e infantilmente excitante da corrida em busca de algo ou em fuga de algo — lembremos que a apanhada é dos mais famosos e universais jogos de crianças — e que mais tarde se adequa à forma diferente de várias espécies de perseguições de natureza psicológica, constituindo aquilo a que se veio a designar genericamente como thriller, definição muito ampla — versões em que Hitchcock ou alguns outros mestres da espionagem se especializaram particularmente — finalmente culminando no uso explícito do tropo nas perseguições automóveis e de outro tipos, como em Bullit; em narrativas cujo nexo principal da trama é uma perseguição longa, como na original série televisiva O Fugitivo, e, finalmente, na obra-prima Apocalypto, que elegemos aqui como exemplo máximo do chase movie.
Comecemos pela comédia muda, que é onde podemos encontrar os primeiros exemplos de perseguições em cinema. Quer seja entre polícias e ladrões, entre amantes e sedutores — situações aliás semelhantes a mais do que um nível — ou até mesmo envolvendo animais e humanos, maioritariamente em desenhos animados, estas perseguições em geral não retratam situações de vida ou morte. São dispositivos usados metódica e regradamente para constituição de um momento agitado da narrativa, muitas vezes coincidindo com o seu clímax. Os casos notáveis de Buster Keaton em Cops (1922) e em Seven Chances (1927) são de assinalar, envolvendo o ridículo do protagonista perseguido por autênticas multidões de dezenas ou centenas de figurantes — no primeiro caso, polícias; no segundo, por noivas. Nenhuma destas películas constitui um chase movie por si só, já que o dispositivo é usado somente num trecho. Essa é uma categoria que só surgirá mais tarde. Alguns outros exemplos importantes da perseguição na comédia musão abordados no seguinte artigo.
No reino dos westerns, mais tarde, podemos encontrar uma infinidade de exemplos de perseguições pontuais, maioritariamente a cavalo. Mas é em algumas obras-primas, nomeadamente The Searchers (1957), de John Ford, que temos a representação plena do chase movie, e talvez algumas das suas primeiras instâncias. Não é possível datar ao certo quando a primeira película cuja estrutura resida inteiramente nesse tropo aparece, mas The Searchers é seguramente uma das mais marcantes da história do cinema. Talvez um sucedâneo muito mais tardio seja Master and Commander: The Far Side of the World (2003), por exemplo, ou The Revenant (2015), embora este último seja um filme sobre sobrevivência aos elementos naturais e não tanto sobre objectos ou sujeitos perseguindo outros. Finding Nemo (2003) merece referência no mesmo estilo, embora de formas muito diferentes.
É certo que o significado do tropo pode ser alargado até à ideia de qualquer pessoa ou coisa fugindo ou perseguindo qualquer outra. Isto implicaria a inclusão de Butch Cassidy and the Sundance Kid(1969) ou de Bonnie and Clyde (1967), sobre foragidos à justiça. Mas o ponto de vista do foragido é aí mais interior, mais introspectivo ou alheio à perseguição, sendo esta apenas um acessório ou um tropo secundário para as questões que realmente movtivam os enredos — no caso,a amizade ou o amor.
Até ao advento do autêntico filme de perseguição, ou sequer da primeira autêntica sequência de perseguição automóvel com valor autónomo dentro da película, temos uma série de entradas que figuram o género de forma muito aproximada. North by Northwest (1967), um dos muitos thrillers de espionagem do magno realizador Alfted Hitchcock, é um exemplo prístino do filme de perseguição, já não invencionam mas plenamente desenvolvido.
A entrada mais citada quando o assunto dos chase movies ou das sequências de perseguição específicas é convocado é indubitavelmente, de forma merecida ou não, o filme Bullitt, de 1968, que contém a primeira encarnação plena da moderna perseguição automóvel, em todo o seu esplendor e orgulho. Uma cena longa, demorada e consciente da sua importância, retrata um Pontiac Firebird conduzido pelo lendário Steve Mcqueen, nas ruas de São Francisco — aliás notáveis ao longo da história do tropo pela sua predisposição para aventuras e tropelias com o automóvel e a alta velocidade, dadas as características íngremes de muitas das suas ruas, além da possibilidade de se cruzarem com um tradicional eléctrico, também típico da cidade.
Na contemporaneidade, Run Lola Run merece também menção, tal como Duel, de Steven Spielberg, os lendários Terminator e Terminator 2: Judgment Day, de James Cameron, e o mais colorido Catch Me If You Can, também de Spielberg, não esquecendo a lendária série televisiva O Fugitivo, adaptada também para filme em 1993. São entradas relevantes nesta lista, não propriamente de importância central mas
Mas queremos destacar, por fim, a obra-prima que é Apocalypto. Mel Gibson, no seguimento de um muito marcante filme sobre a crucificação de Jesus Cristo, vira-se para as Américas pré-colombianas e a ética tribal absolutamente bárbara que lá vigorava. Um nativo, capturado pelas autoridades religiosas, consegue escapar de um sacrifício humano quase certo, e ilude os seus perseguidores, numa extenuante corrida pela selva, durante todo o filme. Trata-se de uma perseguição praticamente sem intervalos, ou seja, uma perseguição constante: o filme consegue a proeza de aguentar, durante 2/3 da sua duração, ou quase na totalidade, esse registo, e conseguiu-o com a repreensão técnica e qualidade de realização de que Gibson é dono.
Toda esta lista foi dominada por critérios objectivos mas também amplamente por memórias subjectivas. Muitos filmes terão ficado esquecidos, e isso não tem problema. Nomeadamente, filmes pertencentes a sub-culturas desconhecidas do grande público — como o cinema asiático em geral, o cinema sul-americano, quiçá até de outras partes. É curioso: várias culturas, pontualmente, são retratadas neste género, mas a maior parte dos filmes provêm da grande indústria americana. Teremos de nos contentar com essa.