Como um Pai Português foi desmembrado por se recusar a ordenar ao Filho que entregasse o Castelo ao Castelhano [1383].

“O bom escudeiro de Nuno Gonçalves, que foi preso nesta peleja que ouvistes [referindo-se a um conflito no Entre-Douro-e-Minho, entre as forças locais do Reino e o castelhano D. Henrique Manuel], tendo grão sentido no Castelo de Faria, que deixara encomendado a seu filho, cuidou aquilo que arrazoadamente era de presumir, a saber: que aqueles que o tomaram o levariam ante o lugar e, dando-lhe alguns tormentos ou ameaça deles, que o filho vendo-o, haveria piedade dele e seria demovido a lhes dar o castelo. E porque não tinha maneira de saber como o d’isto podesse perceber disse a Pêro Rodriguez Sarmento [o homem que o prendeu] que o mandasse levar ao castelo, e que ele diria a seu filho, que nele ficara, que lho entregasse. Pêro Rodriguez foi disto mui ledo e mandou que o levassem logo, e ele, chegando ao pé do lugar, chamou pelo filho, o qual veio à pressa, e ele, em vez de dizer que desse o castelo àqueles que o levavam, disse ao filho nesta guisa: 

  – Filho, bem sabes como esse castelo me foi dado por el-Rei D. Fernando, meu Senhor, que o tivesse por ele, e lhe fiz por ele menagem; e, por minha desventura, eu saí dele cuidando de o servir, e sou ora preso em poder de seus inimigos, os quais me trazem aqui para te mandar que lho entregueis; e porque isso é cousa que eu fazer não devo guardando minha lealdade, porém te mando, sob pena de minha bênção, que o não faças, nem o dês a nenhuma pessoa senão a el-Rei, meu Senhor, que mo deu, que por te perceber disto me fiz aqui trazer; e por tormentos e morte que me vejas dar não o entregues a outrem senão a el-Rei, meu Senhor, ou a quem to ele mandar entregar por seu certo recado.

  Os que o preso levavam, quando isto ouviram, ficaram espantados de suas razões, e perguntaram-lhe se dizia aquilo de jogo ou se o tinha assim na vontade; e ele respondeu que para o perceber disto se fizera ali trazer, e que assim lho mandava, sob pena da sua bênção. Eles, tendo-se por escarnidos, com queixume disto, em presença do filho o mataram nessa hora, de cruéis feridas, e não cobraram porém o castelo.”

 – “Crónica de D. Fernando”, cap. LXXIX, de Fernão Lopes.