Defronte a crise hodierna dos sistemas políticos, impera-se-nos reformular a metodologia de como pensamos a Política, mas também de como a executamos. Entre o realismo e o idealismo como métodos tradicionais, propor-se-á uma Psicopolítica que colmate as carências da investigação e do exercício político moderno.
Texto de João Rochate da Palma. Revisão de João N. S. Almeida. Publicado originalmente em https://osfazedoresdeletras.com/2021/06/22/psicopolitica-principio-metodo-e-fim-da-politica-joao-rochate-da-palma/.
Lead: Defronte a crise hodierna dos sistemas políticos, impera-se-nos reformular a metodologia de como pensamos a Política, mas também de como a executamos. Entre o realismo e o idealismo como métodos tradicionais, propor-se-á, alternativamente, uma Psicopolítica, que colmate as carências da investigação e exercício político moderno.
Introdução
O crescente estado da política, como campo simultaneamente de decisão, estruturação da sociedade e de discussão, está em profunda crise. O imperativo de discutir — que, de discutere, significa investigação — deverá reger a vida académica daqueles que, por gosto ou acidente, caíram no dever de descrever e propor alterações à vida sociopolítica segundo metodologias que não saciam todas as necessidades que a contemporaneidade exige.
Em oposição às metodologias tradicionais da politologia, de seus nomes realismo e idealismo, surge o presente ensaio com uma alternativa, cujos princípios deverão ficar delineados com a exatidão necessária ao entendimento, mas sem uma extensão exaustiva, pois o tempo e espaço não o permitem, nem é desejável que se o faça. Esta metodologia é uma já conhecida – Psicopolítica – e não é original senão como disciplina independente dos vieses que ambas as referidas tradições impõem. Tratar os fenómenos políticos exige que se despoje desses vieses ou se unifique ambas as tradições para colmatar as carências de uma e de outra, assim como protegendo cada das suas falhas maiores com o auxílio da outra. Por outras palavras, sincreticamente edificar uma nova metodologia académica e também um exercício político concreto.
Para levar a cabo esta demanda, teremos de dividir o trabalho em três pontos. Um primeiro, que delineie a Psicopolítica nas suas origens no íntimo do que é humano, seja na dimensão antropológica ou propriamente psicológica. De seguida, a psicologia política como método de análise dos fenómenos políticos. Por fim, como a Psicopolítica transparece no exercício do Poder atual e quais os seus benefícios da sua correta instrumentalização como ponto sintetizante do realismo e do idealismo e alternativa terciária ao estudo da Ciência Política.
O Fundamento da Psicopolítica
O âmbito da Psicopolítica é o do estudo do exercício do Poder e do Poder em geral. Atualmente, a ciência política e a suaprática cisa-se em duas vertentes distintas: a primeira, referente ao realismo, a segunda, em virtude do idealismo político,commumente associado ao liberalismo. Podemos retraçar o primeiro destes à tradição de Maquiavel, sem deixar de mencionar Heródoto e Tucídides que, com a sua metodologia fundadora da disciplina da História, nos dão o método descritivo com o qual podemos, de modo eidético, retirar dos meros objetos de estudo a essência do Poder, tratando assim a política pelo que é e não por oníricas sensações de dever. Em relação ao segundo, ao idealismo — cujo pai, Locke, direciona o papel do Estado à manutenção dos três direitos, liberdade, igualdade e propriedade, inscritos na natureza à primeira entrega da humanidade ao mundo — entramos pelo campo do sonho adentro, anexando à política a moralidade.
Ora, com a Psicopolítica que, não obstante, já está hoje inscrita em qualquer uma dessas metodologias, pretende-se, quando esta é construída como sistema maior de estudo dos fenómenos políticos, constituir um edifício distinto daquele em que os seus precedentes se apresentam. Não apenas servir como princípio ou fim do estudo político, mas como extensão maior na qual se inscreve toda a atividade política, desde as questões interpessoais até às relações institucionais; da estrutura do Estado até à evolução histórica do mesmo; do princípio do Poder até à reação do campo-base onde este se manifesta nas populações sujeitas à sua mão universal.
O que observamos, na Política e Sociologia, é uma redução das relações humanas às de produção ou económicas, às quais se associa o marxismo, por um lado, ou, por outro, um individualismo mascarado de liberalismo, no qual os trâmites do poder se reduzem ao egotismo económico e à concentração exclusiva do poder na potencialidade dos agentes privados do Estado. Nisto, ambos os lados do espectro — os quais, evidentemente, estão redutivamente expostos aqui — insistem em excesso na redução da política à legislação. Na verdade, analogamente à Psicopolítica e em perfeita coincidência com esta, obtemos, de Foucault, uma microfísica do poder, ou, no seu termo mais célebre, biopolítica, cujo escopo de ação estende-se justificadamente para lá do campo do legislativo, não se inserindo de modo algum em qualquer das tradições clássicas da política como ciência, filosofia ou execução do Poder.
A questão do poder fica empobrecida quando é colocada unicamente em termos de legislação, de Constituição, ou somente em termos de Estado ou de aparelho de Estado. O poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado.1
Com recurso a Foucault, entramos numa ramificação intermédia que não só muta mas também disforma o sentido da usual bifurcação da metodologia política. Os termos da biopolítica ou da microfísica são hoje mais evidentes, mas mesmo assim não inteiramente semelhantes, aos que na altura foram delineados nas suas aulas no Collège de France:
O tema era suposto ter sido “biopolítica”, pelo qual entendo a tentativa, iniciada a partir do século dezoito, de racionalizar os problemas postos à prática política, pelos fenómenos característicos de um conjunto seres vivos que formem a população: saúde, higiene, taxa de natalidade, expetativa de vida, raça… Sabemos a crescente importância destes problemas desde o século dezanove e todos os assuntos políticos e económicos por esses levantados até ao presente.2
Assim, entre Maquiavel e Locke, ao qual poderíamos efetivamente também acrescentar o famoso antagonismo entre Hobbes e Rousseau, mas sem qualquer contributo original, surgem-nos, do seio da produtividade de Foucault, os preliminares à Psicopolítica hodierna. As questões nucleares da política contemporânea são, realmente, questões que penetram o vernáculo biológico. A grande maioria destas é evidenciada pela atual pandemia: da saúde à vida, sem negligenciar os casos omissos no supracitado – demografia, liberdade de movimento, a relação entre o lar como local de repouso e agora, também, local de labor. Não podemos deixar de refletir como a psicologia humana é não só afetada pelas restrições ou permissões que o Estado impõe à população, mas como essa é, de igual modo, a causa e o objeto central dos processos decisórios, desde as eleições à legislatura, do executivo ao judicial.
A metodologia Psicopolítica, como nova extensão da ciência política que incorpora em si os âmbitos da biopolítica e da microfísica presente no Poder, possui, como argumento principal, o carácter subjacente a tudo o dito até aqui: a sua face antropológica que coloca a sociedade numa gegenpress (contra-pressão) – emprestando o termo futebolístico – de índole psicológica, da qual, em vez da agonia atribuída ao conflito íntimo, deveríamos retraçar à Antiguidade e resgatar, da etimologia, ágon, como demiurgo da tensão vertical sloterdijkiana3 onde reside o cerne do Poder e que coloca em funcionamento toda a máquina política. É, no fundo, uma antropologia e uma física com leis às quais estamos sujeitos, assim como estão os demais objetos. A nossa biologia, que, por acaso evolutivo, nos entregou a uma condição em que a psique governa os próprios processos orgânicos, tanto os nossos como os de outros, torna-nos forçosamente políticos — implicando assim que no centro de toda a atividade política, está algo dessa primacial condição psicológica com que nascemos.
A Psicopolítica não nega o realismo, nem tampouco, recusa o idealismo político. Alternativamente, engloba, aglutinando ambos, o concreto e real ao onírico e moral, construindo-se, porém, de modo independente, nos seus objetos, meios e fins. Cabe, no delinear do que é a psicologia política, encontrar onde esta está presente hoje, para melhor e para pior, nos moldes em que a partir do antropológico e quasi-metapolítico se pode passar ao exercício concreto do poder.
Psicopolítica como Analítica do Poder
Para melhor compreender o alvo a que, neste escrito, pretendemos lançar, modestamente, o nosso conhecimento filosófico e político, há que distinguir, em função daquilo que de melhor nos traz a metodologia psicopolítica, a sua função analítica da função concretamente política. Como parecerá evidente, creio, a primeira destas serve o propósito da melhor compreensão dos fenómenos políticos, enquanto a segunda já se enquadra na estrutura do Estado e dos seus agentes e objetos nas suas constituições institucionais.
Devemos focar a nossa atenção, em primeiro lugar, na psicologia política como método analítico, ou seja, como processo descritivo das causas primárias dos eventos e dos nexos causais que constituem uma genealogia da política, e onde, por seleção natural, uma ou outra característica progride e se mantém. Se identificarmos, como fizemos, esta metodologia com a de Foucault quando nos indicia uma biopolítica ou microfísica e a estes somarmos, com maior ou menor precisão, uma base conceptual que, a partir da Física, analogamente projectamos no comportamento social e nas consequências do exercício político, possuiremos, em mão, as normas basilares para uma psicologia que explique os fenómenos políticos. Sucintamente, devemos passar a elucidar as várias faces desta, isto é, da Psicopolítica como disciplina que justapõe, justifica e concretiza as origens e evoluções dos demais problemas hodiernos, entre os quais podemos nomear – deixando para mais adiante aqueles que hoje são próprios do nosso tempo – alguns dos que emergem naturalmente em todas as eras:
a) Niilismo Político. Não podemos, racionalmente, encarar o niilismo, ou vacuidade de sentido político, como o conservadorismo moralista o faz; nem, também, abraçar, como é comum aos mais superficiais leitores de Nietzsche, na sua adolescência, a noção romântica do nada como libertinagem. Contrariamente, mas intermediamente, de Nietzsche – que preferia ser chamado de psicólogo a filósofo – para quem a “grandeza do homem é que ele é uma ponte e não uma meta”4, podemos concluir duas máximas pouco exploradas nos confins da psicologia humana e da sua influência no processo histórico: ex nihilo omnis fit (do nada tudo vem) e nihilo gignit nihil (o nada cria o nada). Estas máximas contrapõem-se a duas ficções: a primeira, de que o sentido político é um monumento incólume da História; a segunda, de que existe um ideal histórico a seguir. Ora, segundo a psicologia política, não háuma teleologia para a qual nenhuma ação faça senão adicionar entrelinhas ao texto discorrido da História.:. O que sucede, em vez, é uma evolução que passa de um local histórico x a outro y com fundamentos nas ações e reações de origem e ordem psicológica na constituição do Poder. Assim, todo o Poder surge do niilismo político — puramente psicológico — e caminha para esse com a decadência natural das estruturas políticas. Encontrar, na História, evidências para isto, é o trabalho de quem faça uma genealogia deste processo, para o qual podemos indiciar já três maiores fases: De Roma a Cristo; de Cristo à Revolução Francesa; da Revolução Francesa às Grandes Guerras. De qualquer modo, não querendo divergir do propósito do ensaio, a ideia a reter é a permanente mutação da História fundada pela líquida volição humana — que, de Goethe, já se entendia o dever de “encarar os homens como órgãos do século em que vivem. Órgãos que a maior parte das vezes se movem sem consciência disso.”5
b) Entropia Política. A microfísica de Foucault, assim como a biopolítica, não se limitam exclusivamente ao estudo dos efeitos das instituições nos corpos humanos, nem da disciplina no regime comportamental da humanidade. Também não se restringem à saúde nem ao estudo das populações. Há algo de puramente físico, científico, que oriunda da psicologia e tem efeito na esfera sociopolítica – a entropia social. Entropia social, ou entropia política, não diverge em muito da lei da termodinâmica que impõe: “Num sistema isolado, a entropia só pode aumentar”. O Estado, como depósito das interações institucionais, sociais, individuais e coletivas, é um sistema isolado, e toda a energia que surge das volições humanasapenas se mantém no seu interior: o processo entrópico, ao qual se associa o niilismo mencionado acima, gera uma massa indiscernível. Vários foram os filósofos que caíram no erro de alimentar esta entropia natural do Estado, cegos à realidade que esta causa depois, não só na psicologia individual aquando das ações naturalmente políticas dos sujeitos, mas na psicologia das instituições estatais e dos seus agentes. De Rousseau, escutamos:
Numa legislação perfeita, a vontade particular ou individual deve ser nula, […] e, por consequência, a vontade geral ou soberana, sempre dominante e a regra única de todas as outras. […] A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral; é por ela que são cidadãos e livres.6
E de Feuerbach:
O Estado é a soma de todas as realidades. O Estado é a providência do homem. No Estado, os homens representam-se e completam-se uns aos outros – o que eu não posso ou sei, outro o pode. Não existo para mim, entregue ao acaso da força da natureza: outros existem para mim, sou abraçado por um círculo universal, sou membro de um todo.7
Ambos os exemplos expõem como tomar o Estado por uma única força unitária, onde, seja por vontade geral ou por sentido comunitário, origina apenas uma massa indiferenciada em vez de uma atomização da polis, castra o espaço da ekklesia e a limita ao movimento singular ascendente e descendente do Poder. Nem o realismo e nem o idealismo poderiam satisfazer totalmente o estudo destes fenómenos, normalmente colocados de parte em favor da legislação e da economia como causas e soluções das crises políticas. Com o advento da globalização, o sistema isolado tornar-se-á (se já não o for) o próprio mundo e só poderemos prever — como já alguns autores contemporâneos o fazem, tomando como exemplo Sloterdijk8 e Byung-Chul Han9 — as consequências da entropia latente às sociedades modernas, da qual surgem outras questões a essas anexas e que inundam a vida e os círculos de discussão política diariamente.
Assim, destes exemplos, compreendemos, espero, a carência de hoje, mais que no passado, de Psicólogos e Físicos Políticos; compreendemos melhor olharmos as massas pelo que são, como matéria enquadrada sob as fortes leis naturais às quais nem a civilização foge, participando na própria termodinâmica atuante na sociedade — e tornando-nos, como indivíduos psicológicos, protagonistas da decadência contemporânea. Em vez de atuar segundo princípios vagos e universais que invertem o ditame de Filipe II da Macedónia, César ou Napoleão – divide et impera! — devemos a este retornar para, através da psique, colmatar as carências do Estado, amorfias essas que só a Psicopolítica pode analiticamente explorar e procurar solucionar na praxis.
Psicopolítica além do Bem e do Mal
Estando, com a profundidade necessária, afirmados os pressupostos da Psicopolítica, sem termos tido em conta primeiramente as questões do dia, devemos terminar esta apologia desta nova e simultaneamente tão antiga metodologia política expondo os seus benefícios e perigos no condicionamento imposto pelo contexto contemporâneo.
Para não afastar, desde já, o leitor da temática da psicologia política, devemos considerar as suas funções essenciais na política moderna, através do que nessa pode ser o seu benefício. Será óbvio, a qualquer um, que estamos a presenciar, em todo o mundo democrático, pelo menos, uma crescente polarização da esfera política. Os blocos centrais binominais, que em Portugal alternavam entre PS e PSD, na Alemanha entre CDU e SPD, em Espanha entre PSOE e PP, e mesmo em países tradicionalmente bipartidários, como os EUA, com os Democrats e os Republicans, ou no Reino Unido, com o Labour e os Tories, estão a desfazer-se em prol de novas fações menores e mais individuais, tanto a nível de audiênciacomo de causas. Nos Estados Unidos, o partido republicano apresenta já enormes evidências de cisão10 e no Reino Unido vários partidos regionais e menores têm vindo a ganhar notoriedade nacional. O Ocidente está assim entre populismos e extremismos: tem visto portanto os seus sistemas parlamentares inundados entre uma onda liberal e um retorno a um certo conservadorismo reformista.
As causas latentes a esta polarização — que, se por um lado, prejudica a coesão nacional e democrática, por outro, força os partidos tradicionais a largarem a sua posição de conforto em função de um processo mais dialógico com fim a formar governo — são comumente atribuídas, como é do conhecimento comum, ao “fracasso da Democracia”, à “distância entre representantes e representados”, ou então a causas económicas que podem ser retraçadas à crise de 2008. Anexando a isto, as recém-formadas crises migratórias — que apenas piorarão com o exponencial agravamento da crise climática11 —forma-se a tempestade perfeita para que as próximas décadas sejam tumultuosas, no mínimo. Porém, subjaz a cada característica deste século um aspeto comportamental que influencia não só a restruturação da vida política das instituições e de como cada um vê a conjunção dessas, mas que permite talvez, por via da compreensão, modificar a abordagem às crises, sem por isso cair em radicalismos. O que a Psicopolítica oferece à politologia é um método de análise construído de maneira tal que explica com maior profundidade e precisão as dinâmicas e características intra-específicas do comportamento, dos medos, das reações, dos votos, das crenças e descrenças das populações, colocando em diálogo a mais alta esfera da vida pública com a mais baixa. As abstenções nos sufrágios serão hoje elevadas devido a algum elemento psicológico que afasta as pessoas da política e que se encontra não ao nível da economia, mas das relações humanas; há uma crescente descrença na ciência e um retorno a pseudo-ciências e espiritismos, retorno esse que, se não é denotado propriamente pela minoritária loucura de alguns em relação a teorias como a da Terra plana, é-o certamente pela tendência ascendente no consumo de serviços e crenças da astrologia12, um afastamento da ciência e dos dados objetivos a favor de satisfações pessoais, ou o clamor pela crença em oposição ao conhecimento; tudo isto é também político e pode ser explicado por via deste método que procura descrever a Psicologia em ação na Política.
Contudo, fora o devido louvor merecido pela Psicopolítica em contexto analítico, esta tem vindo a ser instrumentalizada,no exercício concreto do Poder, a favor de um realismo político cujo ditame central afirma a natureza predatória da humanidade. A Biopolítica e Psicopolítica têm vindo a ser associadas a uma tecnologia social cujo propósito não é solucionar as crises contemporâneas de modo algum: aliás, contrariamente, tem vindo a ser provado que é a causa das mesmas. Um testemunho notável, e que já merece a categoria de tratado acerca do uso político das tecnologias que impregnam a psique e fruem lucrativamente das vulnerabilidades biológicas do cérebro humano, é a obra de Shoshana Zuboff – The Age of Surveillance Capitalism. Esta obra, de 2019, expõe com um detalhe aterrorizante o que se encontra em jogo nas interações sociais do século XXI, quando estas se limitam exclusivamente ao campo do virtual. Nesse longo tratado acerca do tecnopoder social, o que mais contribui para a psicopolítica e como esta constitui um perigo quando, no exercício político, se anexa à vontade néscia de alguns, é a descoberta do Behavioural Surplus13 (Excedente comportamental). O termo denota toda aquela informação (data) que está para lá do serviço e da interação com o objeto virtual, isto é, tudo aquilo que poderá melhor ajudar a prever, a partir daquele comportamento particular, o conjunto de comportamentos seguintes. O uso governamental desse excedente já foi denunciando abertamente, em especial com as eleições norte-americanas de 2016. A compreensão das estruturas internas do Poder, isto é, o seu carácter psicológico, antropológico, biológico ou físico, os quais se aglutinam todos sob o conceito de Psicopolítica, permite, maquiavelicamente, manusear o Poder em função da manipulação das instituições e populações.
A Psicopolítica sujeita-nos a um círculo que apenas aparenta ser vicioso. Se, por um lado, permite a compreensão mais profunda e precisa dos fenómenos políticos, da evolução histórica do Poder e das instituições, por outro serve os fins mais malévolos quando associada à aquisição e manutenção da decisão política. Porém, é justamente pelo primeiro ponto, a compreensão do que está em jogo, que quando nos defrontamos com o uso manipulador da psicologia para fins políticos nos tornamos capazes de identificar e neutralizar a ameaça ao tecido social. É assim que a Psicopolítica conjuga o realismo com o idealismo, faz do Poder o princípio e fim da vida política, mas não como o que subjaz à vida política; aquilo que se imprime no Poder e no seu movimento é a psicologia, a biologia, a física e antropologia. Por outro lado, adquire um elemento moral, que coloca o ideal da política num qualquer onirismo cuja pretensão é tornar real e que, para tal, há que sintetizar-se ao realismo para compreender a natureza e dinâmicas humanas sobrepostas à vida política.
Considerações finais
Dado assim por terminada esta incisiva — e por vezes circular, mas sempre com um propósito clarificador — introdução de princípios da Psicopolítica que apontam para que esta se torne uma metodologia da politologia independente do realismo ou do idealismo, devo relembrar, pois julgo permanecer vago no correr do texto, que não se oferece aqui algo inexistente, mas sim uma reforma do existente em algo de concreto e estruturado. Se, por um lado, a Psicologia para uso político é um método de investigação que pode ser retraçado à lateralidade da Filosofia de Maquiavel, Hobbes, Nietzsche, Arendt ou Foucault, é também um método de fazer política que já é utilizado há muito e ainda mais hoje, onde o foco já não cai sobre a expansão territorial, geográfica, mas no poderio subtil sobre o bem-estar e conforto das populações. Essa lição, emergente de Foucault, torna-se concreta para o bem e para o mal. Deixo, então, duas notas, referentes a esta divisão entre investigação e execução.
O processo de investigar a Política é vasto e exige conhecimento de um conjunto infindável de áreas anexas. O que a Psicopolítica vem colmatar não é uma universalidade da politologia, mas a carência de causas humanas para a economia e para os fenómenos políticos, em vez do inverso – causas materiais como fonte de fenómenos humanos. É uma oposição ao materialismo de Marx que já Arendt faz em The Human Condition, quando faz do labor e do trabalho atividades humanas das quais emergem o animal laborans e o homo faber e que nos prendem diretamente ao corpo e ao mundo, opostamente a serem os criadores do corpo e do mundo14. A psicologia política procura ver no corpo, na humanidade, nos indivíduos, nas suas relações, aquilo que do mundo os afeta e aquilo deles que afeta o mundo, em virtude da política e a partir daí derivar um conjunto de fatos acerca da essência do Poder num tempo ou na História.
Quanto ao exercício político, à praxis política propriamente dita, esta não se opõe à Psicopolítica como método investigativo, mas é, em vez, regido por essa, constituído por essa e deixa-se orientar e regular por aquilo que é benéfico à coesão, estrutura e decorrer natural da História e do tecido sociopolítico. É uma perigosa demanda, sujeita a um escrutínio imenso, mas também deverá assim ser toda a vida pública. Não podemos abdicar da liberdade em favor da libertinagem, tal como não nos é abdicável o direito à opinião, em virtude dos vieses subjetivos de cada um. A procura pela objetividade depara-se com a divergente realidade de cada, mas porém é da dialogia e do ágon já mencionado que se gera a objetividade, não do agrupar em fações que se limitem a confirmar as crenças daquele que se ajuíza certo. A Psicologia Política, como método por direito próprio, procurará, idealmente, fazer do sonho realidade ao esbater corpos, formando o tecido social do qual brota todo o tronco edificante da Política e do Poder.
Notas Bibliográficas
1. Michel Foucault, Microfísica do Poder (Rio de Janeiro, Edições GRAAL, 1979) p.221
2. Michel Foucault, The Birth of Biopolitics: Lectures at the Collège de France, 1978-1979 (Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2008), p. 317
3. Cf. Peter Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida, (Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2018) p.26
4. Friedich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra (Alfragide, Ediclube, 1997), p.69
5.Johann Wolfgang Goethe, Máximas e Reflexões, (Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2000), §95, p.35
6. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social (Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1989) p.106
7. Ludwig Feuerbach, Princípios da Filosofia do Futuro (Lisboa, Edições 70, 1988), p.17
8. Cf. Peter Sloterdijk, In the World Interior of Capital (Londres, Polity Press, 2013)
9. Cf. Byung-Chul Han, Psychopolitics: Neoliberalism and New Technologies of Power (Londres, Verso, 2017)
10. Joan E. Greve, «‘This path is untenable’: can the Republican party slit with Trumpism?», em The Guardian, (01-02-2021), https://www.theguardian.com/us-news/2021/feb/01/republican-party-donald-trump-us-senate
11. Abrahm Lustgarten, Meridith Kohut, «The Great Climate Migration Has Begun», em The New York Times (23-07-2020), https://www.nytimes.com/interactive/2020/07/23/magazines/climate-migration.html.
12. Hillary George-Parkin, «The anxieties and apps fuelling the astrology boom», em BBC Worklife (09-02-2021), https://www.bbc.com/worklife/article/20210205-why-astrology-is-so-popular-now
13. Cf. Shoshana Zuboff, The Age of Surveillance Capitalism (Nova Iorque, Public Affairs, 2019), pp.78-115
14. Cf. Hannah Arendt, The Human Condition, p.84