Uma proposta utópica para equilibrarmos a pequeníssima diferença etária entre partes do nosso corpo. Texto de Nuno Margalha, psicólogo e director do Instituto Português de Relojoaria. Revisão de João N.S. Almeida.
No início o universo era um sítio organizado. Toda a matéria estava arrumada, condensada num único ponto. Tudo o que aconteceu desde então progrediu em direcção à desordem num processo inevitável de desarrumação cumulativa. Hoje em dia chamamos tempo ao conjunto de acontecimentos que progridem no sentido do caos. A forma como esta progressão se manifesta no nosso corpo criou um problema central: devemos passar a vida em pé ou deitados?
Até há um século atrás era claro para todos que existia uma seta do tempo. Actualmente, como seria de esperar, é tudo um pouco mais caótico. Uma das descobertas que mais contribuiu para este rebuliço na área da física foi a proposta de que o tempo não é uniforme. Isto significa que não passa da mesma forma em sítios diferentes. A explicação é simples: o tempo é retardado pela força da gravidade, o que significa que decorre mais lentamente na planície, mais perto do centro da Terra, onde a gravidade é mais forte, do que na montanha, onde a gravidade é mais fraca. Toda esta falta de constância na sua velocidade cria um problema do qual não se fala muito, talvez por ser tão assustador. Se o tempo é mais lento quando a força da gravidade é mais forte, e se passamos grande parte da nossa vida em pé, então, os nossos pés são mais novos do que a nossa cabeça. Os morcegos são dos animais mais equilibrados do planeta, visto dormirem de cabeça para baixo e voarem de cabeça para cima; os peixes são outro bom exemplo. Os seres humanos, por seu lado, com a mania de andarem em pé, estão condenados a este desequilíbrio etário, a não ser aqueles que passam a vida deitados. Esses ficam apenas com as costas mais novas do que a barriga, se dormirem de costas, ou com a barriga mais nova do que as costas, se dormirem de barriga. Talvez a derradeira solução para o problema do envelhecimento não uniforme do corpo humano seja: passar a vida deitado, de preferência em várias posições.
COMO MEDIR O TEMPO PARA SE MUDAR DE POSIÇÃO NA CAMA
Estabelecida a melhor forma de contornar os efeitos da falta de uniformidade do tempo no nosso corpo, resta-nos compreender como funciona a medição do próprio tempo. A compreensão da medição do tempo é fundamental para se saber exactamente a que horas se deve mudar de posição na cama. A medição do tempo consiste simplesmente na contagem de impulsos. Todos os relógios criam os seus próprios impulsos. Os de quartzo excitam um cristal de quartzo que, dessa forma, entra em vibração, e o tempo resulta da contagem dessas vibrações. Os relógios atómicos e quânticos funcionam de forma semelhante, mas excitam átomos de césio em vez de cristais de quartzo. Os relógios mecânicos, que não recorrem a electricidade, ou electrónica, criam impulsos através da decomposição de um movimento contínuo, como a queda de um peso ou o desenrolar de uma mola, em movimento descontínuo.
RELÓGIOS MECÂNICOS
Dentro dos relógios mecânicos pode fazer-se uma divisão entre relógios que contam interrupções durante a queda de objectos e relógios que contam interrupções durante o desenrolar de molas. O funcionamento dos primeiros é mais fácil de compreender. Ao puxarmos a corda, ou a corrente de um relógio de coluna, os pesos sobem, ficam em cima, e ao longo dos dias, das semanas, ou dos meses, descem progressivamente, impulso a impulso. Estes relógios são máquinas que travam e libertam os pesos através de um sistema de rodas dentadas. No centro de algumas rodas cravam-se ponteiros que podem girar mais lentamente ou mais rapidamente, e dessa forma temos ponteiros de segundos, horas, minutos, dias, meses, semanas, anos, anos bissextos, marés, fases da lua, datas de acontecimentos religiosos, passagem de cometas, signos, entre outras complicações. A forma como estas rodas são travadas e destravadas, condicionando dessa forma a descida dos pesos, resulta de um conjunto de invenções fascinantes. A corrente, ou a corda do relógio que prende os pesos, está presa numa roldana. Essa roldana está, por sua vez, engrenada com um conjunto de rodas dentadas. Caso a queda do peso não fosse travada, todas estas rodas se moviam a alta velocidade até que o peso batesse no chão. Isso seria catastrófico. Tal não acontece devido a uma única peça chamada de âncora. A âncora move-se em simultâneo com o pêndulo, oscila para ambos os lados periodicamente ao longo de toda a descida dos pesos, que pode demorar dias ou mesmo meses, depende do relógio. A oscilação da âncora permite-lhe travar e destravar repetidamente o movimento das rodas dentadas. Os relógios de pulso têm um funcionamento muito semelhante, com a diferença de que em vez de pesos na ponta de cordas, têm uma mola, que pode ser enrolada através da coroa do relógio. Desta forma, enquanto os pesos ou as molas exercem força, o relógio produz impulsos que podem ser utilizados para vários tipos de medição. Como a medição do tempo durante o qual devemos estar em cada uma das posições na cama, por forma a não permitir um envelhecimento pouco uniforme das diferentes partes do corpo.
NA CAMA QUE FARÁS, NELA TE DEITARÁS
Esta é uma proposta que pode facilmente ser confundida com preguiça, mandriice, apatia. Nada podia estar mais longe da minha intenção. Trata-se apenas de uma uniformização da idade corporal. Defendo aliás que tudo o que se faz na vida deve fazer-se com propriedade. Se decidirmos passar a vida deitados, devemos plantar as árvores, tratar a madeira, e construir com ela a nossa própria cama. Se pretendermos cumprir horários rígidos para mudanças de posição na cama, por forma a fazer uma uniformização ainda mais fina do envelhecimento corporal, devemos minerar cobre, zinco, ferro e carbono para fazer latão e aço, que vão compor o relógio que vamos construir com as nossas próprias mãos. Desta forma resolve-se o problema da má reputação que resulta de passar a vida deitado e ganha-se propriedade sobre a vida.